30 de dezembro de 2021

Melhores do Ano [Arquivo, 2021]

4 Mars “Super Somali Sounds From the Gulf of Tadjoura” (Ostinato) 

Abdul-Alim Kamal “Dance” (Soul Brother) 

Akiko Yano “Ai Ga Nakucha Ne” (Wewantsounds) 

Don Cherry “The Summer House Sessions” (Blank Forms) 

Don Cherry’s New Researches “Organic Music Theatre Festival de Jazz de Chateauvallon 1972 (Blank Forms) 

Eliane Radigue “Opus 17” (Important) 

George Otsuka Quintet “Loving You George” (Wewantsounds) 

Hailu Mergias & The Walias Band “Tezeta” (Awesome Tapes From Africa) 

Hasaan Ibn Ali “Metaphysics: The Lost Atlantic Album” (Omnivore) 

Henry Franklin “The Skipper” (Real Gone) 

Henry Kawahara “Cybernetic Defiance and Orgasm: The Essential Henry Kawahara” (EM) 

Hiroshi Suzuki “Cat” (We Release Jazz) 

Instant Composers Pool “Incipient ICP, 1966-71” (Corbett vs. Dempsey) 

José Mauro “A Viagem das Horas” (Far Out) 

Juju “Live at 131 Prince Street” (Strut) 

Julius Hemphill “The Boyé Multi-National Crusade For Harmony: Archival Recordings, 1977-2007” (New World) 

Kohsuke Mine “First” (BBE) 

Linda Smith “Till Another Time: 1988-1996” (Captured Tracks) 

Lon Moshe & Southern Freedom Arkestra “Love is Where the Spirit Lies” (Strut) 

Majid Soula “Chant Amazigh” (Habibi Funk) 

Malagasy / Gilson “At Newport-Paris” (SouffleContinu) 

Malagasy / Gilson “Malagasy” (SouffleContinu) 

Mankunku Quartet “Yakhal’ Inkomo” (Mr. Bongo) 

Marcos Resende & Índex “S/T” (Far Out) 

Michel Redolfi “Sonic Waters, Underwater Music 1979-1987” (Sub Rosa) 

Misa Blam “Secanja” (Everland) 

Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou Dahomey “Le Sato” (Acid Jazz)

Patrice Rushen “Straight From the Heart” (Strut) 

Persona “Som” (Black Sweat) 

Roberto Miranda’s Home Music Ensemble “Live at Bing Theatre: Los Angeles, 1985” (Dark Tree) 

Roedelius/Czjzek “Weites Land” (Bureau B) 

Ron Everett “The Glitter of the City” (Jazzman) 

Roy Brooks “Understanding” (Reel to Real) 

Rudolph Johnson “Spring Rain” (Real Gone) 

Ryuichi Sakamoto “Esperanto” (Wewantsounds) 

Salah Ragab & The Cairo Jazz Band “Egypt Strut” (Strut) 

Sandra Sá “Vale Tudo” (Mr. Bongo) 

Shintaro Quintet “Evolution” (BBE) 

Sylvin Marc / Del Rabenja “Madagascar Now” (SouffleContinu) 

The Awakening “Mirage” (Real Gone) 

Tiziano Popoli “Burn The Night / Bruciare La Notte: Original Recordings, 1983-1989” (RVNG Intl./Freedom to Spend) 

V/A “Cameroon Garage Funk, 1964-1979” (Analog Africa) 

V/A “Edo Funk Explosion, Vol. 1” (Analog Africa) 

V/A “Essiebons Special, 1973-1984” (Analog Africa) 

V/A “Heisei No Oto – Japanese Left-Field Pop From The CD Age, 1989-1996” (Music From Memory) 

V/A “La Ola Interior: Spanish Ambient & Acid Exoticism, 1983-1990” (Bongo Joe) 

V/A “Somewhere Between: Mutant Pop, Electronic Minimalism & Shadow Sounds of Japan, 1980-1988” (Light in the Attic) 

V/A “Zanzibara 10” (Buda) 

Viejas Raíces “De Las Colonias del Río de La Plata” (Altercat) 

Zeca do Trombone “Rota-Mar” (Altercat)

16 de abril de 2021

Desprez: Le Septiesme Livre De Chansons (Ricercar, 2021)

Há 500 anos, quando Josquin Desprez morreu, foi como se a própria música tivesse perdido a sua unidade orgânica. “Vamos evocar, ó Musas, os amores de Josquin”, escreveu Jacquet de Mântua, em “Dum vastos Adriae fluctus”, antes de mergulhar a pena no sangue do seu dedicatário, cujo cadáver dava mostras de querer a todo o custo reanimar. Em “Musae Jovis”, Nicolas Gombert lamenta esta “Cruel e perversa morte/ Que priva templos e cortes de pronúncias aprazíveis”, antes de exortar as musas a homenagearem com uma coroa de louros Josquin, o “Príncipe dos Músicos”. E, em ‘O mors inevitabilis’, Jerónimo Vinders é ainda mais direto: “Por isso, diz, ó Músico: ‘Paz à tua alma, Ámen.’” A fama de Josquin era tal, aliás, que, em 1545, quando a gráfica de Tylman Susato deu à estampa este “Septiesme Livre de Chansons” estava, também, a produzir algo de inédito: um volume inteiramente consagrado à obra de um falecido compositor em que repercutia, em adenda, nas peças de Gombert e Vinders, o impacto da sua própria morte. Não admira que na capa deste extraordinário CD surja “Retrato de um Músico”, de Leonardo da Vinci, como quem diz que ninguém levaria a mal se o pronome indefinido passasse a pessoal e se viesse aqui representar o músico. Ilustra-o uma anedota: em 1515, mais coisa, menos coisa, pasmado, Adrian Willaert dá com o coro da capela papal, em Roma, a interpretar um moteto seu, “Verbum bonum et suave”; mas terá ficado de boca aberta ao perceber que o coro atribuía a autoria do moteto a Desprez e que se recusava a continuar a cantá-lo quando o equívoco se esclareceu. Não seria um caso isolado – e, dada a quantidade de obras que lhe eram amiúde imputadas, em 1540, o editor alemão Georg Forster foi obrigado a reconhecer que, “agora que está morto, Josquin edita mais do que quando estava vivo!”. O que permitiu, de certa forma, delapidar o cânone: ou seja, têm vindo a emagrecer com o passar do tempo aqueles primeiros, monumentalíssimos volumes que pioneiros na edição de partituras em prensa móvel, como Ottaviano Petrucci (gente praticamente contemporânea da Bíblia de Gutenberg, portanto), haviam dedicado à obra de Desprez. Porque tem vindo a ser abandonada a incongruência interpretativa que em virtude desse gigantesco escopo o acompanhava como uma rémora, torna-se igualmente possível um disco tão fiel, com Dominique Visse a tornar o texto hipersensível sem borrar as linhas do caderno, nos temas profanos, e a adoçar a polifonia renascentista sem engrossar o fluxo harmónico em que se agita, nos sagrados. O “Príncipe dos Músicos” não merecia outra coisa.

1 de abril de 2021

New York Polyphony “And The Sun Darkened” (BIS, 2020)

Chama-se “And The Sun Darkened”, apenas porque et sol obscuravit pareceria demasiadamente pretensioso, calculo. Mas é isso, exatamente, o que se escuta em “Ofício da Paixão”, de Loyset Compère (c. 1445-1518), quando, após a punção do flanco de Jesus, se conta como “a terra tremeu” e “a escuridão caiu sobre o mundo” – está nos Evangelhos. Nas vozes de Christopher Herbert, Steven Wilson, Geoffrey Williams e Craig Phillips (o New York Polyphony), a personagem ganha tridimensionalidade – é derelictus, traditus, venditus, afflictus, além de pungido com uma coroa de espinhos e pregado a uma cruz, claro, mas, se isto fosse um filme, era como se soubéssemos de antemão da sequela. Nessa perspetiva, não se imagina melhor banda sonora para a Páscoa: genialmente programado, o disco abre com Compère, segue para Josquin Desprez (c. 1450-1521), salta até aos nossos dias com Andrew Smith (1970), recua mais 500 anos até Adrian Willaert (c. 1490-1562) e, antes de uma derradeira pancada no Condensador de Fluxo, como no DeLorean de “Regresso ao Futuro”, passa por Cyrillus Kreek (1889-1962) e Pierre de la Rue (1452-1518). A metáfora é tão clara que nem era preciso acabar num apelo à imortalidade: “Quit vitam sine termino nobis donet.”

Ou seja, mais uma vez, através do seu ato primário, evoca-se o ministério de Jesus na Terra – vencer a morte com a sua morte e de certo modo glorificar e libertar a humanidade ao avocar as suas fraquezas – para servir os oprimidos. Gente de hoje, de ontem e, presumivelmente, de amanhã, que se vê reduzida à primeira pessoa, tal o desamparo: “In te spero, in te confido”, ouve-se, com os agudos no céu e os graves no inferno, em “Tu és o Refúgio dos Pobres” (Desprez); “Tu es Jesus, pax et protectio”, conclui-se, em total estado de penúria, em “Cruz Triunfante” (Compère); “Todos os que me vêem troçam de mim”, desabafa quem enfrenta a agonia, sem valimento, em “Salmo 22” (Kreek). Porque, através de um hino de Tomás de Aquino, o diz De La Rue, não precisa o New York Polyphony de o afirmar: “Oprimem-nos guerras hostis/ Dá-nos força, dá-nos ajuda”, isto é, seja agora, seja há 500 anos, cerca-nos a morte. Como tal, a peça central da gravação é “Salmo 55”, de Smith, composta expressamente para este grupo e, quase apetece dizer, para este tempo de pandemia: há temor, tremor e traição, sim, mas a acompanhar a frase “Oxalá tivesse eu asas como a pomba” há igualmente um simplíssimo motivo de duas notas pronto a reforçar o poder da imaginação. Aí, nesse refúgio para o qual partiria a voar, poderia enfim o salmista desfazer os seus traumas e as suas angústias. Nós também: enquanto a terra treme, é só deixarmo-nos estar quietos num canto com este disco a tocar.

26 de março de 2021

Marcos Resende & Índex "Marcos Resende & Índex" (Far Out, 2021)

Pois é: “Portugal! Ainda e sempre, Portugal!” Foi o que o pianista brasileiro Marcos Resende me respondeu há uns quatro anos, quando lhe perguntava como era regressar ao país em que tinha recebido as maiores vaias da sua vida. “Nessa altura, no início de 70, esse negócio nem mexia muito comigo, sabe? Parecia consequência do estatuto marginal do jazz. Mas, quando voltei com o Índex [no 8º Cascais Jazz, em 1978], aí, até da imprensa levei porrada!” A acreditar nos jornais, produzia uma música “não pouco barulhenta, eletrificada de não poder mais – mas pouco original. […] Cópia [nada] feliz de Herbie Hancock”, como, então, no semanário “Se7e”, escrevia António Macedo. Caso fosse preciso, era a prova de que algumas das problemáticas por Marcos colocadas permaneciam por superar: no I Encontro da Canção Portuguesa, em março de 1974, antes de, com ar professoral, Vitorino, Jorge Letria, Fausto, Zeca, Freire ou Adriano subirem ao palco do Coliseu, nemse chegou a ouvir, dada a força dos assobios” (in “DN”). “É isso”, prosseguia, entre risos. “A minha revolução não era propriamente aquela prescrita pelos senhores doutores!” Ao tornar ao Brasil, e depois de, por cá, ter constituído os Bossa Jazz 3, os Contacto ou os Status, de ter tocado em festivais (Porto e Vilar de Mouros, em 1971; Cascais, em 1971 e 1972; etc.) e clubes de jazz ou, aos sábados, no “Pop 25”, da RTP 1, ter entrado pelos lares portugueses adentro, Marcos era subitamente confrontado com a ideia de que preconizar o exercício da liberdade na música não tinha sido sinónimo de aceitação pelos opositores da ditadura. “Sem mágoa! Até porque foi a oportunidade de formar o Índex, para o qual logo compus um tema chamado ‘Praça da Alegria’ em homenagem aos meus amigos e ao meu tempo passado no Hot Clube, que muito me orgulha”, dizia-me. Integrante deste inédito de 1976, ‘Praça da Alegria’ ficou até hoje por ouvir, Marcos morreu há quatro meses, de um cancro, e, nas artes, Portugal continuou a preferir contestar,do que celebrar os grandes que em si iam despontando. Sorte do Brasil, que logo teve quem ombreasse com Donald Byrd, Roy Ayers ou Lonnie Liston Smith. Até sempre!

19 de março de 2021

Shintaro Quintet “Evolution” (BBE, re. 2021)

Certamente ambiciosa, a peregrinação de Shintaro Nakamura à Meca do jazz não foi um desafio sem precedentes – quando lá chegou, em 1982, já ilustríssimos conterrâneos seus (Teruo Nakamura, Isao Suzuki e Yoshio Suzuki, por sinal, também eles contrabaixistas) haviam dado sete voltas à Caaba entoando cânticos de adoração, antes de a beijar. Teruo não se tinha ficado por aí: em “Big Apple”, envolvendo a nata dos músicos locais, deu-lhe uma valente trinca! Dir-se-ia gente particularmente atenta às tabelas de vendas, tendo em conta a sua produção: isto é, ao que faziam Crusaders, Spyro Gyra, Earl Klugh, Pat Metheny, Grover Washington Jr., Bob James, David Sanborn e Lee Ritenour. Mas, por sorte, ou intervenção divina, o disco que mais sucesso fez no período era o que dos restantes mais se distinguia – e a nenhum outro, quanto ao primeiro álbum de Wynton Marsalis, este “Evolution” tanto se assemelha. Com pequeninas diferenças: parafraseando Bill Shoemaker, a propósito de Marsalis, em “Jazz in the 1970s”, para Shintaro, a tradição não era o Código Penal; swing, um mantra de conformismo; clássico, sinónimo de historicista. Observe-se, aliás, este pormenor: o disco de Shintaro intitula-se “Evolution”; o de Marsalis, como afirmou Francis Davis, crítico do “The Village Voice”, só por acaso não se chamou “Recapitulatin’ with the Miles Davis Quintet”. Claro que, como Marsalis, se pudesse, também Shintaro gostaria de ter a seu lado Herbie Hancock, Tony Williams e Ron Carter – ao invés, tinha Jeff Jenkins, Bob Kenmotsu e um par de expatriados, Fukushi Tainaka e Shunzo Ohno. Mas, contrariamente a Marsalis, não os empregaria para ilustrar o que no campo da biologia evolutiva se apelidava de Lei da Recapitulação (i.e., a desacreditada teoria que o desenvolvimento do embrião repete o desenvolvimento evolucionário da espécie à qual pertence passando por etapas que se assemelham aos seus ancestrais na fase adulta.) Só que a História é uma pescadinha de rabo na boca: quando Shintaro deixou Nova Iorque e tornou ao Japão, em 1984, “Evolution” vendeu 1000 unidades; “Wynton Marsalis” ia nas 100.000 – ah, se pudesse ter sido ao contrário!

12 de março de 2021

Nahawa Doumbia “Kanawa” (Awesome Tapes From Africa, 2021)

Dir-se-ia ter ficado com o destino traçado em 1981, quando alguém caracterizou as suas primeiras gravações como um produto de “La Grande Cantatrice Malienne” e a Radio France Internationale lhe atribuiu o prémio “Découverte”. Mas Nahawa Doumbia, que de certa forma nasceu sob o signo da maldição, sabia o que queria desde menina, quando cantar se revelava o único meio ao seu alcance para se ancorar num mundo para lá da fome, da culpa e do medo. Desde então, órfã que é, e ao longo de uma boa dúzia de álbuns, sempre que o assunto é o dever filial fica com a voz embargada, como se tivesse um remendo na alma e as emoções amputadas, os laços familiares feitos de corda gasta. Em finais de 90, pelo telefone, o produtor Frédéric Galliano descreveu-ma como uma força da natureza e ainda me lembro da sua metáfora: “Tem um tom tão radiante que é como se tivesse colocado coroas de ouro nos dentes todos! Mas a Nahawa não é uma jelimusolu. Aliás, em estúdio, nas sessões do Electronic Sextet, sempre que o assunto vinha à baila ela sorria e dizia que não com a cabeça, repetindo: ‘Kono. Sou uma simples kono’. Então, perguntei ao marido, o guitarrista N’Gou Bagayoko, o que queria com aquilo dizer: ‘Ave canora.’ Percebes? Canta porque quer!” Discutíamos um novo projeto editorial, a Frikyiwa, e Galliano estava fascinado pelos jeli e pelas jelimusolu, ou griôs, como lhes chamava: “Ainda há sítios no Mali em que vivem completamente à margem da comunidade”, dizia-me ele. A frase trazia à memória os primeiros escritos europeus sobre as tradições uolofe e mandinga, de gente como André Álvares d’Almada ou Francisco de Lemos Coelho (nomeadamente o “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde, desde o rio de Sanagá até aos baixos de Sant'Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de seus Costumes, armas, trajes, juramentos, guerras” e a “Descrição da costa da Guiné desde o Cabo Verde athe Serra Lioa com todas as Ilhas e Rios que os Brancos Navegam”, ali em finais do século XVI e meados do século XVII) que se referia a uma casta tão marginalizada – a musical – que só poderia ser efetivamente descrita com o apodo “judeu”. Daí a importância daquele kono, que mais não era que um eufemismo para independência, a recusa da servitude. Agora, todo ele virado para o futuro, animado por uma euforia inconcebível, alimentado por uma trupe de “tocadores de tambores, rabecas e cavacos”, como contavam os exploradores portugueses, “Kanawa” é o seu epítome doutrinal. Aos 60 anos, analfabeta, Nahawa folheia as páginas de um livro por escrever de que conhece cada linha, cada parágrafo, e cujo essencial se consegue discernir, mesmo se as palavras nos parecem fora de ordem. Diz: esperança.

5 de março de 2021

Gesualdo: Madrigali A Cinque Voci (Harmonia Mundi, 2021)

A declaração de intenções fê-la Agnew há um ano, quando apresentou os “Libri Primo & Secondo” desta integral: “Mesmo as derradeiras e musicalmente mais ousadas obras de Gesualdo resultam de uma evolução lógica e intelectualmente defensável rumo a um cromatismo que não se prova tão revolucionário quanto o que seria à primeira vista de supor, nem propriamente sem precedentes ou antecedentes, como se tem igualmente o hábito de sugerir.” Resumindo: o escocês não acredita que numa análise forense estas partituras exibam quaisquer traços de sangue. Dessa forma, então, o momento em que Dom Carlo Gesualdo assassinou a mulher e o amante, em 1590, não seria já uma espécie de ponto de Arquimedes na sua biografia, responsável por atos, decisões e acontecimentos subsequentes. Não, na origem desta nova teatralidade no seu discurso polifónico estaria a sua mudança para a cidade de Ferrara, em 1594, quando do céu, ou dos corredores do poder, surgiu a oportunidade de se unir por casamento com Leonor d’Este – terá sido a exposição à música do Ducado que o levou a dramatizar os códigos expressivos do género madrigalesco. É possível. E nem será preciso sacar da prateleira “Music in Renaissance Ferrara, 1400-1505”, de Lewis Lockwood. Já depois disso, e até Gesualdo lá chegar, o feudo foi um laboratório sujeito às extravagâncias de Desprez, Obrecht, Brumel, Willaert, Rore, Wert, Marenzio, Agostini e Luzzaschi – Monteverdi apelidou-o de Academia dos Intrépidos. No entanto, ninguém, como Gesualdo, privilegiou tanto assim temáticas melancólicas, mórbidas, a roçar o macabro, nem, através de vertiginosos intervalos, prendeu deste modo o lastro da culpa a um cortejo de misera vita, dolorosa morte, tormento, lagrime i sospiri, martiri, cruda sorte, sospira e more – fórmulas que atuavam como um vírus que começava por atacar o ouvido interno, transformando cantores em equilibristas, desestabilizando a coesão de grupo. Mas nem isso abala a firmeza retórica desta abordagem aos “Libri Terzo & Quarto”, compostos e publicados antes de a Casa d’Este perder Ferrara e, mais a sul, no Castelo de Gesualdo, Dom Carlo perder a cabeça.

26 de fevereiro de 2021

Alexander Hawkins “Togetherness Music” (Intakt, 2021)

No início deste prodigioso “Togetherness Music” não está bem o verbo mas, sim, o sibilante soprano de Evan Parker – lá está ele, algo solipso, cicioso, elíptico e fechado sobre si mesmo, fluente na língua dos encantadores de serpentes. Seja como for, no tema (‘Indistinguishable from Magic’, chama-se), porque “nele estava a vida”, pode dizer-se que “tudo foi feito por ele” e que “nada do que tem sido feito foi feito sem ele”, tal como nos versículos iniciais de João – não é por acaso que aos três minutos dessa sua improvisação a solo entra em cena um clangoroso e demiúrgico tutti, logo escoltado por aparatosos glissandi, com violinos, violas, violoncelos e contrabaixos a testar motores de arranque. Claro que, com Parker, será tudo relativamente mais ambíguo – neste contexto, como se diz dos cientistas, ele é tanto o criador quanto o destruidor de mundos – e, nessa perspetiva, se estivéssemos no Paraíso, o seu papel seria o daquela genesíaca e astuta nutricionista que desejava à força toda que Adão e Eva incluíssem mais fruta nas respetivas dietas. A metáfora não é completamente gratuita: há 20 anos, num expoente do género, o momento mais transcendente do já de si inteiramente sublime “Strings With Evan Parker” chamava-se ‘Double Headed Serpent’, título que Parker sacou a um dos seus passeios pelo British Museum – “Não há melhor forma de lidar com bloqueios criativos do que visitar um museu”, disse-me há um punhado de anos no Jardim das Esculturas do Museu do Chiado, muito apropriadamente. Aí, deu com essa escultura em madeira com turquesa incrustada de origem misteca ou asteca, símbolo de renovação, sim, mas também dos mundos terreno e subterrâneo, perfeitamente aplicável ao binómio composição-improvisação. Por intermédio do pianista Alexander Hawkins, é de certa forma a esse universo que Parker regressa, embora não se dê por si em ‘Ecstatic Baobabs’, por exemplo: um quinteto de cordas fractal com sons que mais parecem raios de luz. Particularmente policéfalo, com uma pequena secção de metais e madeiras, e com gente como Percy Pursglove na trompete, Matthew Wright na eletrónica ou Mark Sanders no contrabaixo, este “Togetherness Music (For Sixteen Musicians Feat. Evan Parker + Riot Ensemble” – no qual se dá, em ‘Ensemble Equals Together’, com uma outra formulação muitíssimo sugestiva – é a nova charneira desse binómio, simultaneamente generativo e degenerativo, como todos os monstros, em radiante (des)contínuo com aquela música feita de transparências e assombrada por espectros mais leves que o ar com a qual sonham sopradores, cientistas e serpentes desde que o mundo é mundo.