31 de dezembro de 2009

Melhores do Ano

“Très Très Fort” Staff Benda Bilili (Crammed)
“Floodplain” Kronos Quartet (Nonesuch)
“Francophonic Vol. 2 (1980-1988) Franco & Le Tpok Jazz (2cd + Livro Sterns)
“Entre Amigos” Dolores Duran (Biscoito Fino)
“Volume Two: Echos Hypnotiques 1969-1979” Orchestre Poly-Rythmo De Cotonou (Analog Africa)
“Black Rio 2” (Strut)
“Legends of Benin” (Analog Africa)
“Tudo Ben (Jorge Ben Covered)” (Mr. Bongo)
“Atahualpa Yupanqui – Obra Completa Para Guitarra (Composiciones Propias)” Carlos Martinez (3cd Acqua)
“The World Is Shaking: Cubanismo From The Congo 1954-1955” (Honest Jon’s)

A partir de gravações privadas de 1958 tudo chegou e partiu entre murmúrios de João Gilberto. O material de arquivo tornou a revelar-se dramaticamente vital. Fora de competição: Agustí Fernández “Un Llamp Que No S’Acaba Mai”, Akira Sakata “Friendly Pants”, Evan Parker Electro-Acoustic Ensemble “The Moment’s Energy”, Flower-Corsano Duo “The Four Aims”, Ken Vandermak, Barry Guy & Mark Sanders “Fox Fire”, Okkyung Lee, Peter Evans & Steve Beresford “Check For Monsters”, Polwechsel & John Tilbury “Field”, Ran Blake “Driftwoods”, Wadada Leo Smith & Jack DeJohnette “America” e WHO Trio “Less is More”. No renascimento da Horo: Sam Rivers “Black Africa! Live in Villalago 1976”. No da Nessa: Charles Tyler “Saga of the Outlaws”. Ao vivo: Omar Souleyman, Group Doueh e Peter Evans. Melhor manifesto recuperado: “Fight the Future”.

24 de dezembro de 2009

Anouar Brahem “The Astounding Eyes Of Rita”

Como o original refrigério do mar experimentado a meio do tempo quente e seco ou a descoberta inaugural dos aromas amargo e doce das frutas de Verão, o íntimo afecto que com a música de Anouar Brahem desponta nem sempre resiste à repetição. Por isso dificilmente se voltará ao instante em que, no encontro com “Barzakh” e “Conte de l’Incroyable Amour”, ouvi-la era como nos olhos ter a dançar o revérbero do Mediterrâneo ou nos pés marcada a sua fímbria salgada. E também a sua discografia subsequente se afastou de tão vagas impressões. Até este momento. Porque no subúrbio dos poemas de Mahmoud Darwish – a que se dedica o álbum – ganha novamente razões para se deixar ir com a brisa para longe do destino dos homens. E, como uma balada de exílio em tudo fiel à do autor palestino há um ano falecido, trata nos seus espaços menos discursivos de olhar para lá da poeira dos sentidos e encontrar um mundo que, infelizmente, foi o paraíso. Seguem a par da obra poética estas canções para oud, clarinete, baixo e percussão como um sinuoso rio que às margens reclama terra e sangue para não se perder no oceano. Até tudo ficar branco.

19 de dezembro de 2009

Franco & le TPOK Jazz “Francophonic Vol. 2 (1980-1988)”

Kinshasa chamava-se então Léopoldville. E, após anos de terror, a capital do Congo Belga adaptava-se a um tecido urbano que pressupunha progresso civilizacional mas que se reduzia à inclusão no seu traçado do ‘bairro indígena’. Aí, sintonizava-se uma estação de rádio e ouviam-se canções do Sexteto Habanero ou da Orquesta Aragón, enquanto dezenas de músicos mantinham o decoro colonial pelas charangas de restaurantes europeus. Imagine-se o bairro Tremé, em Nova Orleães, se na cidade se tivesse mantido a escravatura e o jugo espanhol e um dia, com o jazz, soasse de uma corneta a liberdade, e ter-se-á ideia do que significou em 1953 a entrada em estúdio de um jovem de 15 anos que viria a cantar como ninguém a independência do seu país. A ascensão de Franco a inultrapassável potência criativa do continente africano comprova-se pelas mais de 1000 canções gravadas pela sua banda até 1980, período do qual se extraiu o primeiro volume de “Francophonic”. Agora, nesta antologia de 150 orgíacos minutos, torna-se coerente uma fase mais complexa e de maior dispersão, assombrada pela corrupção resultante da proximidade de Mobutu, pelo exílio e pela doença, mas que os 40 músicos da TPOK Jazz reconduziam a um redentor manifesto contra o medo do mundo. Um dos acontecimentos do ano.

12 de dezembro de 2009

Sugestões de Natal

Arnaldo Antunes “Iê Iê Iê”
No ano do lançamento em DVD de “Na Onda do Iê Iê Iê” e da publicação da autobiografia de Erasmo Carlos, só Arnaldo Antunes para pôr a saudade a dançar. Sublimando Roberto Carlos, Golden Boys ou Fevers (por cá havia Sheiks, Tártaros ou Chinchilas), abrilhanta penteados, encurta minissaias e lustra turbinas naquilo que nunca fez antes: canções de época.
Luz Casal “La Pasión”
Pomposos sopros insuflam orquestras cubanas em canções de René Touzet e Osvaldo Farrés, move-se a congas o metrónomo mexicano segundo María Grever e Rosario Sansores Prén, demolham-se ‘Historia de un Amor’ e ‘Cenizas’ e uma vaga de violinos encharca boleros de Porto Rico, Chile, Brasil e Argentina. Canta-se bem mas quem alegra é o maestro, Eumir Deodato.
Adriana Partimpim “Partimpim Dois”
Livros e discos infantis são uma espécie de nova beneficência. Tanto aliviam consciências quanto salvam carreiras. Adriana Calcanhotto toma comprimidos para o enjoo de “Maré” e dá dois passos atrás. Mantêm-se referências e cúmplices, adiciona-se o Dylan cristão renascido, mistura-se uma meninice de Vinicius e batuca-se João Gilberto. Não faz mal a uma mosca.
Seu Jorge “América Brasil, O CD Ao Vivo”
A gravação é de Janeiro e traz apenas um inédito. Mas nada diminui o impacto de milhares de vozes a cantar ‘É Isso Aí’, ‘Carolina’, ‘Tive Razão’ ou ‘São Gonça’. Apela aos mais básicos instintos do mercado mas ninguém combina desta maneira heranças de Jorge Ben, Bezerra da Silva e Emílio Santiago. Há ainda na banda uma endiabrada rabeca a lembrar Jorge Mautner.
“Elas Cantam Roberto Carlos”
Não há Natal sem Roberto Carlos. E é natural que a festa arranque mais cedo neste ano em que se celebram os seus 50 anos de carreira. “Elas…” regista o concerto de 26 de Maio em que se engalanaram vozes e vestidos. No alvo: Alcione, Marina Lima, Adriana Calcanhotto e Nana Caymmi. O ‘Rei’ apareceu para a inevitável ‘Emoções’ mas não precisou de ir ao duche.
Don Cherry & Latif Khan “Music / Sangam”
Nunca terá a sua acção dependido do calendário, mas não virá a despropósito evocar agora quem sempre celebrou valores ecuménicos. Nesta sessão de 1978 (com Khan nas tablas), Cherry cruza melodias guineenses com indianas, canta, toca órgão, harmónio ou flauta de bambu, e, à semelhança de Jon Hassell, recorda parte daquilo que Miles desistiu de sonhar.

5 de dezembro de 2009

Orchestra Baobab “La Belle Époque”

Em noites brandas sonhava-se com o futuro. A música apaziguava espíritos, abrigava amantes, abraçava ideologias e aproximava-se de muitos sítios sem ao certo pertencer a lugar nenhum. Ao balcão discutia-se política e fechavam-se negócios, ministros recebiam no restaurante dignitários ocidentais e, pelos cantos da discoteca, conspiravam emissários de potências estrangeiras. Em palco suspendia-se o tempo: a banda da casa fixava-o no par de décadas em que a rádio nacional rodava discos do Sexteto Habanero, Orquesta Aragón ou Arsenio Rodríguez. Ocasionalmente, a pedido de representantes do governo de Léopold Senghor, e para que ninguém se pensasse num barco rumo a Cuba, o doce embalo tropical incluía melodias tradicionais wolof e a toada folclórica derivava para repertório mandinga ou baladas crioulas de Casamança, próximas das que cantava a Cobiana Djazz na Guiné-Bissau. Assim foi no Club Baobab, em Dakar, da inauguração em 1970 até ao fecho de portas em 1979. A sua orquestra, com instrumentistas de diferentes etnias e origens (Togo, Mali e Nigéria), encarnou na perfeição a tese cultural pretendida para o Senegal e – a par da Bembeya Jazz na Guiné ou a OK Jazz no Congo – simbolizou a recondução da diáspora a solo natal. Sabe-se que a sua melhor fase em disco é de final de setenta a inícios de oitenta, que caiu vítima da fórmula que criou, mas que anos depois renasceu. Esta retrospectiva ganha importância pelas limitações do mercado: os temas do primeiro CD são retirados de dois álbuns de 1972, em parte por reeditar (alguns foram incluídos pela Oriki em “A Night At Club Baobab”); dez canções do segundo, gravadas em 1978 em Paris, viram a luz do dia em 1992 numa edição já esgotada (“On Verra Ça”, World Circuit). Esta é mais uma fresta do que uma porta escancarada, mas o que se vê nunca se esquece.

28 de novembro de 2009

Buika y Chucho "El Último Trago"

São vozes que choram, clamam, se esganam e só depois cantam. E duas mulheres que cultivam uma ambígua identidade sexual. Por isso terá o seu quê de calculismo produzir o encontro de Buika com repertório associado a Chavela Vargas. E a primeira coisa que se confirma é a grandeza de um registo tão à vontade na tradição imortalizada por La Niña de los Peines quanto noutro qualquer. Porque se nas gargantas erradas o flamenco é pouco mais que uma doença de vogais, na de Buika é tão natural quanto o primeiro grito. E servirá para revolver as entranhas destas rancheras, ora vexadas valsas, ora pútridas polcas, ora brumosos boleros, até que as canções de Álvaro Carrillo (‘El Andariego’), Agustín Lara (‘Se Me Hizo Fácil’), Juan Zaizar (‘Cruz de Olvido’) ou, inevitavelmente, José Alfredo Jiménez (de ‘Las Ciudades’, com aquele murmurado “Te vi llegar y senti la presencia de un ser desconocido”, à embriagada ‘En El Último Trago’) mais não fiquem que um cancioneiro de sussurros. Chucho Valdés – a cumprir funções próximas das de seu pai, Bebo, no “Lágrimas Negras” de Diego Cigala – evita a caída no dramatismo drag de Lola Beltrán ou Lucha Villa e lança-se por uma lírica ponte suspensa entre Bill Evans e Frank Emilio Flynn.

21 de novembro de 2009

Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou "Volume Two: Echos Hypnotiques 1969-1979"

James Brown disse muitas coisas espantosas. E não se vislumbra uma leitura tão rigorosamente suspensa entre a contínua admiração e a permanente desconfiança quanto a da sua autobiografia. Ainda assim, restam ao fim de todos estes anos momentos de irresoluta perplexidade na sua interpretação, como aquele em que se refere à música africana revelando nada ter encontrado no continente negro que lhe permitisse reconhecer as suas raízes. Mais perturbante ainda será não lhe ter sequer servido de matéria para reflexão o repetido facto de – do Zaire à Nigéria – tudo o que por lá ouviu lhe parecer um eco distorcido da sua própria produção. Na verdade, ainda que ignorasse aquilo que a etnomusicologia do seu tempo caracterizava como um “eco de outro eco”, de nada valem as suas palavras face ao que provou em disco. E também porque não faltariam candidatos a demonstrar-lhe na prática a origem da ancestral força espiritual que tão bem evidenciava em palco e em estúdio, bastaria uma palavra sua para que dessas viagens tivesse levado mais que banhos de multidão e dinheiro de ditadores. A Poly-Rythmo, por exemplo, sempre que se dedicou ao jerk (expressão que qualificava temas tradicionais do vodun ‘modernizados’ ao jeito da pop ocidental) confirmou dominar a mesmíssima grandeza matricial do groove por si dilatado e, mais concretamente, igualar a modelar destreza polirrítmica do seu baterista, Clyde Stubblefield. E não se poderia imaginar mais eficaz banda para o acompanhar quando, em “Hell” (1974), cantava o que sabe qualquer homem no Benim: “a man has to go back to the crossroads before he finds himself”. Esta é, em sete anos, a quarta antologia consagrada à orquestra de Cotonou, a primeira a libertá-la dos fantasmas de Franco e Fela Kuti e a melhor a representá-la pela sua acção natural: na virtual dependência do “Padrinho do Soul”.

7 de novembro de 2009

Zanzibara 5: Hot In Dar – The Sound Of Tanzania 1978-1983

São hoje conhecidas as múltiplas manifestações culturais de uma Tanzânia então uniformizada pela propaganda. Talvez por isso – apesar de ser possível concentrar atenções na obra de Mlimani Park Orchestra, Dar International Orchestra e Vijana Jazz Band fazendo-a depender do patrocínio do regime – se liberte de constrangimentos políticos este quinto volume da série “Zanzibara” (irmã, na Buda, da mais prestigiada “Éthiopiques”). Porque esta nova era para a música popular de Dar es Salaam cruzava tradições tanzanianas com o que de mais significativo chegava do Zaire ou do Quénia sem que as elites se interrogassem quanto à sua legitimidade nacionalista. E foi esse impulso – a par da reabilitação do swing de tempos coloniais filtrado por uma apertada malha funk – que precipitou a explosão da musiki wa dansi, febre que durou até final dos anos 80 quando sintetizadores e caixas de ritmo substituíram instrumentistas. Mas aqui celebram-se ainda bandas com três dezenas de músicos capazes de espelhar em palco os mais graciosos gestos nas pistas de dança, até, por fim, entre espirais de guitarras eléctricas efervescendo como bolhas em bebidas gasosas e secções de sopro dialogando como claques rivais em bancadas opostas, se revelar um inesperado centro criativo para a África oriental.

31 de outubro de 2009

Bassekou Kouyate & Ngoni ba "I Speak Fula"

Há por vezes um vazio crítico em torno dos sons que chegam do Mali. Ou, na melhor das hipóteses, valoriza-se o arremesso instrumental e ignora-se a lírica. O melhor e o pior deste sucessor de “Segu Blue” reforçará a evidência. Porque triunfa o álbum ao abraçar o mundo sensual e falha ao estender-se ao político sem que isso perturbe a sua eufórica recepção na imprensa europeia: mas em nenhuma outra arte popular terá ainda significado quem, por exemplo, refere as crianças como o futuro ou as mulheres como mães de todos nós enquanto sugere que é hora de acabar com as guerras. E logo quando se anuncia num título que, no campo da etnicidade, é exemplarmente aforístico: fala hoje em inglês o jeli (cantor de louvor) que, vindo da tradição Bamana, afirma cantar no dialecto Fula. A música, em parte, corresponde a essa nova lingua franca. E, num contexto de inédita elegância (quarteto de ngoni), combinando estilos de rara conjugação e com Vieux Farka Touré ou Toumani Diabaté como convidados, consegue este segundo disco de Bassekou Kouyaté acercar-se da construção própria dos clássicos. Deixa é para demasiado tarde – numa tríade que começa numa canção de embalar, passa pela memória de um pai falecido e termina numa balada de caçador – tudo o que de novo, singular e belo tem para dizer.

24 de outubro de 2009

Keletigui et ses Tambourinis "The Syliphone Years (1968-1976)”

Não se trata apenas de nostalgia. Até porque sites e blogues como “Radio Africa”, “Voodoo Funk”, “World Service” ou “Likembe” – que funcionam cumulativamente como um arquivo virtual para fonogramas africanos há muito desaparecidos – têm consequências dramaticamente práticas num presente incapaz de gerar ideias originais. Por isso não se reduzirá o seu impulso à contrição dos que lamentam tempo perdido. Pelo contrário, é por seu intermédio que o espectro de acção pop revisita agora uma área que o passar dos anos foi deixando na sombra – a da música moderna com base em África. Mas porque o africanismo não terá de se limitar aos humores e às modas nos meios de produção ocidental surge também quem deite mãos à obra e tente contar a história completa. Graeme Counsel, por exemplo – o impulsionador de “Radio Africa” –, estará em Conacri até Janeiro de 2010 no âmbito do programa Endangered Archives, da British Library, a proceder à catalogação da Syliphone, editora estatal da Guiné. Confirma-se ainda como titular oficioso da série “Authenticité”, através da qual a Sterns restaura históricas gravações de Bembeya Jazz, Balla et ses Balladins, Super Boiro Band ou, de forma absolutamente imaculada, Keletigui et ses Tambourinis. E ao recompensar a relevância estética do que durante décadas se enquadrou na propaganda independentista reflecte o seu trabalho uma inegável dimensão simbólica: a de que a cultura sobrevive à margem de todas as manipulações. Aqui, recuperando a banda de Kélétigui Traoré (falecido há menos de um ano), revê-se a política de autenticidade mandinga instaurada pelo ditador Sékou Traoré e revela-se uma visão que nela se baseou mas em muito a transcendeu. Porque soube diluir fronteiras até ao ponto em que introduções em saxofone a evocar Lester Young, versões do Sexteto Habanero cantadas em espanhol, rumba congolesa, solos de trompete derivados daquilo que Félix Chappottin fazia na charanga de Arsenio Rodríguez, ritmos antilhanos similares aos que levaram Richard Berry a compor ‘Louie Louie’ e o mais primordial melodismo folclórico em quase tudo comum ao do Mali – e empregue de forma semelhante à da Rail Band – serviram para justificar o injustificável: a invenção de uma identidade mais guineense do que africana. E na sua audição cronológica identifica-se um discurso progressivamente menos formular, ainda que sempre permeável à diáspora, e, em paralelo, desvenda-se uma meta-narrativa que à luz da actual música que de si deriva – de Vampire Weekend a The Very Best – se prova insuperavelmente densa e enérgica. Uma imperdível lição.

17 de outubro de 2009

Tom Jobim "Tom Canta Vinicius - Ao Vivo"

Olhando estrelas suspensas sobre um tamarineiro, João Gilberto procurava-a desde criança. Vinicius de Moraes encontrou-a anos depois e para não ter de a trair dedicou-lhe um amor de menino. Entre o sonho de um e o coração de outro esteve Antônio Carlos Jobim, de lápis atrás da orelha, mangas arregaçadas e piano aberto. Foi ele que educou essa ficção chamada bossa nova. 50 anos mais tarde eles ainda lá estão, entre fantasmas, suspendendo a passagem das horas, dias e vidas, mas continuando a inventar o futuro. Cada instante serve para o repetir: como este, de 1990, em que Jobim reduziu a Banda Nova ao essencial e, com o seu filho Paulo, Danilo Caymmi e o casal Paula e Jaques Morelenbaum, apresentou um ciclo de canções que renovava o ensaiado para “Inédito” e lembrava o seu mais emblemático parceiro, desaparecido em 1980. E piano, violão, flauta, voz e violoncelo evocaram os espíritos de Chopin, Satie, Debussy, Ravel e Villa-Lobos, até tudo mergulhar em nostalgia e, por uma vez, dispensar ‘Chega de Saudade’. Mas as outras grandes canções que escreveram juntos entre 1957 e 1963 estão cá – ‘Eu Sei Que Vou Te Amar’, ‘Garota de Ipanema’, ‘A Felicidade’ ou ‘Insensatez’ – em arranjos que, colados a versos do poeta, “voam tão leve” e se perdem “em carícias de água”. Um enlevo de câmara.

9 de outubro de 2009

“Pixinguinha no Cinema”

Primeiro tornaram-se públicas as gravações de João Gilberto em casa de Chico Pereira, depois revelou-se o que, entre amigos, cantava Dolores Duran, e por fim vasculhou-se o baú de um dos primeiros génios da música popular brasileira: Alfredo da Rocha Vianna, aliás Pixinguinha. O que permite concluir que – independentemente do quadro legal – se requalifica em três actos o conceito de arquivo num país pouco dado a honrar o passado. E conseguindo-se, para mais, valorizar testamentos artísticos que se supunham imperturbavelmente acabados. Esta primeira edição da banda-sonora escrita para “Sol Sobre a Lama”, o filme de 1963 de Alex Viany, implica ainda que se olhe para o líder dos Oito Batutas – e criador dos imortais ‘Carinhoso’ e ‘Rosa’ – e reconheça temperança na escrita para sopros (flauta, clarinete, tuba) e elegância na adaptação de ritmos afro-brasileiros a peças próximas da flexibilidade tonal de Villa-Lobos ou Milhaud. Arranca numa quase sinfónica ‘Abertura’ – entre Stravinsky e o Jobim de ‘Sinfonia da Alvorada’ – e termina numa elegia para três violinos e contrabaixo que sugere um Wagner equatorial. O resto é um festim de choros, maxixes e sambas, com primorosas canções (letras de Vinicius de Moraes) aqui regravadas por Elza Soares, CéU ou Jards Macalé. ‘Samba Fúnebre’ traz um dueto de Mariana de Moraes e Marcelo Vianna, netos dos compositores. Um pequeno requinte.

25 de setembro de 2009

“Gózalo! Bugalú Tropical Vol. 3”

Não seria obrigatório começar pelo fim, mas a evocação da morte de Joe Cuba em Fevereiro último, aos 77 anos, servirá para reforçar a perspectiva de que a História por vezes depende de figuras de transição. Aproveitou então o El Barrio – o bairro hispânico de Nova Iorque – para lançar um suspiro final por aquele que, há quatro décadas, aí espalhou uma efémera febre musical ao gravar ‘Bang! Bang!’, o primeiro boogaloo com vendas superiores ao milhão. Um dos que, como tantos outros, mais não fez do que tentar agradar a uma audiência de “morenos americanos do Harlem” – indiferente a mambos e cha cha chas – desenvolvendo um paradigma baseado tanto no vernáculo afro-cubano quanto no funk e no soul. Modelo que se alastrou por toda a América Latina, e pelo Mundo, e que alimentou pistas de dança até ao preciso instante em que os Fania All-Stars, em 1972, foram filmados para “Nuestra Cosa” inaugurando a Era da salsa. Aqui, num terceiro volume resgatado a arquivos de editoras peruanas entre 1966 e 1970, a Vampisoul comprova o seu indefinível alcance e confirma que aquilo que o académico Juan Flores, em “From Bomba to Hip-Hop: Puerto Rican Culture and Latino Identity”, apelidou de uma “celebração colectiva e inclusiva absolutamente nuyorican”, na realidade não se restringiu à Grande Maçã. E identifica um espaço de modernidade com origem em interposta experiência de emigração. Porque também num Peru dado ao “Indianismo” – e à beira da asfixia ditatorial – correspondeu o estilo a aspirações contra-culturais, psicadélicas e libertárias, com as charangas de Lucho Macedo, Alfredo Linares, Coco Lagos, Compay Quinto, Al Valdez, Tito Chicoma ou Nilo Espinosa (nos Hilton’s e com os Bossa 70) em frenesi estético, político e sexual, carregado da mesma energia explosiva empregue a norte por Ray Barretto, Mongo Santamaria ou Eddie Palmieri.

19 de setembro de 2009

Tinariwen "Imidiwan : Companions"

As armas há muito que se calaram. E na capa do novo álbum, em composição semelhante à do grupo no último “Aman Iman”, surgem agora quatro sorridentes meninos anunciando um rejuvenescimento. Também as canções – gravadas em Tessalit, a aldeia e oásis do Sara em que assentaram estes antigos caravaneiros – falam de tempos de mudança. E claro que tudo efectivamente se alterou desde que a banda tuaregue chegou aos palcos internacionais – o actual nomadismo é do tipo frequent flyer. E a prova da sua universalidade – como se discute no DVD – é serem muitas coisas para tantas pessoas diferentes. Aqui, como o Dylan de “Together Through Life”, produzem um manifesto de idiossincrasia a partir de práticas musicais muito simples e reformulam de forma essencial o que aos olhos de alguns se afigurará acessório a quatro décadas de blues-rock. Isto é, no fundo, está tudo na mesma e não é desta ainda que ultrapassam a sua biografia. Mas só não se surpreenda quem – no acaso de começar a ouvir o disco por uns derradeiros minutos em que é subitamente o deserto que toca a banda – nele encontrar a memória dos Cluster, na altura em que os alemães reinventavam paisagens para uma desiludida natureza. Se até agora os Tinariwen se fixaram no contínuo flamejar da fogueira, parece ter chegado a hora de seguir as fagulhas que o vento espalha pela noite.

12 de setembro de 2009

Entrevista a Alex Ross, autor de "O Resto é Ruído - À Escuta do Século XX"


Quando em 2007 viu ser publicado “The Rest Is Noise: Listening To The Twentieth Century” Alex Ross não imaginava que iria terminar o ano na lista dos Dez Mais do New York Times, a ser citado para o Pulitzer, nomeado e premiado por um punhado de instituições de relevo – a Fundação MacArthur atribuiu-lhe em 2008 o notável “Genius Grant” no valor de 500.000 dólares – e, muito menos, com um modesto bestseller em mãos. E nem por um instante formava a hipótese de o ver traduzido e editado em países dos quais não mencionava um único compositor – o caso de Portugal, a que chega agora às livrarias com o título “O Resto É Ruído: À Escuta do Século XX”.

O crítico do The New Yorker vislumbra o custo de tanta notoriedade e revela-se perplexo face à tendencial glorificação mediática de que dependem as indústrias culturais. Porque se poderá confundir o essencial da sua mensagem: de que este é um selectivo ponto de partida para a descoberta e compreensão da música erudita do século XX, consciente das suas enormes lacunas e sujeito não só à interpretação de cada leitor como à sua reacção. Por isso nada se ganha em discutir aquilo em que não se tornou: numa enciclopédia. Até porque há omissões para todos os desgostos (além dos portugueses estão ausentes Mompou, Piazzolla, Maderna, Marshall, Siegmeister, Blacher, Ginastera, Guerra-Peixe, Sallinen, Kancheli, Silvestrov, Satoh, Ifukube, Pavlova ou Tüür). Mas, na verdade, tal não lhe belisca a leitura. Nas suas 550 páginas atinge-se um raro equilíbrio entre biografia, crítica e análise histórica, desenvolvem-se teses de surpreendente sagacidade, delimita-se um espaço permeável ao anedótico e ao polémico sem uma imposição partidária, mantém-se um clarividente estilo narrativo de profunda qualidade literária capaz de se socorrer de adjectivação tão subtil quão desarmante, descrevem-se obras num inesgotável manancial de metáforas que pulsam expressivamente nas entrelinhas, discorre-se extensivamente sobre tangentes como a música para filmes, a música para desenhos animados, o jazz e a música popular e – o que não será o menor dos seus méritos – expõem-se raciocínios com uma fluidez e domínio formal que por vezes contrasta com o retrato de um fragmentado século musical de revoluções, contra-revoluções, radicalismo, alianças, traições e sucessivos colapsos.

O título do seu livro implica um mergulho no som – mais até do que na música propriamente dita. Quando é que decidiu tentar compreender e organizar tudo o que ouvia?
Houve efectivamente uma altura da minha vida em que me senti imerso em som: os anos em Harvard. Estudava História e Literatura e trabalhava na Rádio universitária. A nossa biblioteca devia ter qualquer coisa como 25.000 discos e comecei a explorar a sério o repertório do século XX. Simultaneamente ouvia pop e o jazz de Cecil Taylor ou Anthony Braxton. E o que me entusiasmava era compreender como as histórias se cruzavam, isto é, de como a música que ouvia à noite se relacionava directamente com os factos e acontecimentos que estudava durante o dia. Recordo o encontro com a “Salome”, de Richard Strauss – tão excitante, imperfeita e repleta de sons espantosos. Fiquei fascinado e quis mergulhar na obra – até que ela me abriu a porta para um universo de dissonância, novas possibilidades e texturas complexas. Senti a vertigem de me ver arrastado para um novo mundo.

Vertigem essa que se prolonga pelo livro. E tornou os factos permeáveis a uma perspectiva individual sem lhe imprimir uma dimensão ideológica. Ainda assim, quais os argumentos fundamentais que queria transmitir?
Colocar a música num contexto social, cultural e político abrangente. Não queria apenas falar da vida dos compositores ou discutir as suas obras, mas mostrar que ela se relacionava directamente com o seu tempo. E havia um conjunto de histórias tão dramáticas que pediam para ser contadas: como o caso de Shostakovich durante o regime soviético, o de Copland nos Estados Unidos ou os de Eisler, Hindemith e Weill no período nazi. É difícil manter essa perspectiva quando se trata de explicar a origem de determinado estilo, mas fiz questão em não encarar a música como um mundo abstracto, fechado e auto-suficiente. Quis ainda incluir o maior número de estéticas possível, evitando a habitual divisão entre conservadores e revolucionários.

Até porque essa divisão acaba por excluir quem que não foi ‘apenas’ um inovador – ou pelo menos não o foi de forma ostensiva – como Britten, Messiaen ou Sibelius?
E que acabam muitas vezes por se ver afastados da discussão à luz desta distinção ideológica ou analisados só nessa perspectiva. Quis mostrar que se podia discuti-los sem forçar uma leitura dialéctica. Na Universidade passava um dia a ouvir Britten e outro Xenakis, por exemplo, e era incrível reconhecer as suas personalidades através das obras, a sua singularidade e a sua voz. E identificava-as não por terem escolhido este ou aquele estilo mas sim por criarem algo de único. Para retomar a pergunta diria que outro aspecto chave na elaboração do livro era o de estudar a relação entre música clássica e música popular. É um tema recorrente do livro. Não o mais importante mas um que me fascina profundamente.

Claro que não se poderá falar dos temas recorrentes no livro sem se mencionar o “Doutor Fausto”. O que o fez identificar-se de forma tão forte com a personagem?
Li pela primeira vez o Fausto do Thomas Mann aos dezoito anos. Foi na mesma altura em que começava a prestar atenção a Schoenberg – e o paralelismo entre as minhas sensações e aquilo que se passava no próprio livro impressionou-me ao ponto de – talvez aí – ter começado a pensar numa história da música sob a sua influência. Mann entrelaça a vida de um compositor ficcional com o trágico destino do seu país. Enfim, não quero parecer simplista – porque estas relações foram extremamente complexas – mas quis evocar várias vezes esta ideia do compositor envolvido em obscuros processos históricos.

Funciona quase como um livro dentro do livro. Serve de metáfora para Strauss ou Shostakovich e parece prolongar-se mesmo quando escreve sobre Stockhausen e Boulez.
Decidi manter a metáfora a pairar sobre o livro – essa ideia de procura incessante, do criador a desejar atingir novas esferas de conhecimento. Até porque quis manter viva a ideia de que tudo tem um custo. Mas nunca chego a sugerir relações directas. Claro que olhando para o caso de Strauss há de facto ali – na sua relação ambígua com Hitler – qualquer coisa de ‘pacto com o diabo’. Ou na ligação de Shostakovich a Estaline. Mas a politização da música é tão fácil.

Estamos a um mundo de distância desse tempo?
Sim. E por mais que se desprezem os sistemas de então ficamos nostálgicos ao reconhecer a importância que os compositores chegaram a ter. Há hoje imensas obras a expressar convicções políticas, mas não há muita gente a ouvi-las. Um dos últimos casos de um compositor com uma dimensão política de relevo foi o de Bernstein. Ainda há pouco encontrei a sua ficha do FBI e nela figuram transcrições de telefonemas entre J. Edgar Hoover e Richard Nixon em que o então presidente lhe chamava “filho da mãe”. Não estou a ver que nos últimos anos George W. Bush ou Dick Cheney se tenham preocupado minimamente com o que John Adams andava a fazer.

O que nos leva à questão do envolvimento actual dos Estados com as artes.
Tem de se perceber que entre a Europa e os Estados Unidos a situação é radicalmente diferente. Aqui, as instituições que mantêm viva a cultura das orquestras e das salas são na sua esmagadora maioria privadas. O orçamento do Estado para as artes é insignificante – o que não vejo a alterar-se. Porque, pese embora a propensão para a sua institucionalização, prefiro imaginar-me num mundo em que o Estado subsidia a criação. Claro que, por outro lado, esta anarquia do sistema norte-americano pode conduzir a resultados muito curiosos. Há inúmeros compositores que se revelaram dramaticamente inventivos em momentos de dificuldades. E é também pelo facto de não haver uma tendência dominante – aquela apoiada pelo Estado, por exemplo – que apareceram aqui não-alinhados como Henry Cowell, Charles Ives, Lou Harrison ou John Cage, presenças maravilhosamente estranhas quando se analisam as suas contribuições específicas para a música do século.

E cuja importância – talvez até à década de 50 – permanece subvalorizada?
Completamente. Há tantas figuras brilhantes que são como histórias incompletas. Dedico três capítulos à música norte-americana e só falo de falhanços: o primeiro será a incapacidade em apreciar e nutrir a contribuição de músicos afro-americanos para a música clássica, o segundo trata dessa inépcia em desenvolver um sistema de promoção das artes e o terceiro descreve como os compositores tiveram de evoluir fora do sistema. É talvez o mais optimista porque acaba com os minimalistas, que são conhecidos na Europa, a par talvez de Cage ou Elliott Carter.

Mas raramente se fala de Harry Partch ou Henry Flynt, que provaram que o isolamento se tornou também numa fonte de poder. A pintura reconhece os seus “outsider artists” mas a música clássica ignora os seus “outsider composers”?
Impressiona-me como as personalidades mais ousadas e provocadoras das artes visuais são mais tarde ou mais cedo reconhecidas pelo grande público. O Morton Feldman perguntou um dia: “o que aconteceria se olhássemos para a música enquanto arte?”. Parece uma frase absurda mas na verdade são poucos os exemplos de compositores contemporâneos considerados dessa maneira – enquanto artistas com ideias poderosas e a reflectir algo de importante para a sociedade. Parece que ficámos presos aos estereótipos com que se caracterizavam os compositores nos séculos dezoito ou dezanove.

O que faz com que muitas vezes se ignorem nomes exteriores à tradição europeia. Uma tendência que terá forçosamente de mudar?
Claro. Tive imensos problemas em concluir o livro porque me parecia não estar a reflectir essa realidade: a da música clássica se ter globalizado. Principalmente desde 1975 ou 1980, um período em relação ao qual não é fácil ter uma perspectiva histórica. E que é igualmente muito marcado por mulheres, como Ustvolskaya. Era impossível citar toda a gente sem que o último capítulo se transformasse numa lista interminável. Mas basta pensar em Unsuk Chin, Kaija Saariaho ou Osvaldo Golijov para se concluir que as obras mais interessantes não vão aparecer de onde se espera.

Porque se vive para lá de um tempo de síntese? Ou seja, aquela leitura linear, cronológica e baseada no progresso pode ser abandonada?
Essa teleologia da música moderna tem imensas limitações. Mas assim que a ignoramos surge o caos – uma anarquia de vozes em competição, um sentimento de total ecletismo e desorientação. Eu não rejeito essa narrativa de progresso, mas um dos objectivos do livro será sempre o de alertar para a inexistência de um sentido único e para essa ideia de que uma música interessa mais do que outra. Não há um cânone exclusivo. Julgo que é hoje possível mantermos uma perspectiva que aceite contradições – as obras exigem-no. E acredito no novo. Mesmo se é óbvio que há ainda tanto a fazer com esta violenta variedade de sons a que fomos expostos nos últimos 109 anos.

Por isso tantos compositores refletem sobre uma música para além da música, ou pelo menos – como Valentin Silvestrov – no seu fim?
Há obviamente quem se tenha sentido a chegar no fim desta história. Lembro-me de certas peças de Schnittke ou das atmosferas pós-apocalípticas de Nono ou Lachenmann. Mas depois olho para Gershwin, Bernstein, Janácek, Bartók ou Steve Reich, pessoas que à sua maneira transmitiram esta ideia de que a música pode sempre começar de novo. E acredito que é isso que vai acontecer com uma nova geração de compositores. Aliás, quis chegar ao maior número de pessoas possível porque, comparando, quantas pessoas lêem literatura contemporânea e quantas ouvem música contemporânea? Quantas vão a exposições e ao cinema e quantas vão a estreias de novas óperas ou sinfonias? Se não criarmos públicos estes compositores não terão futuro.

5 de setembro de 2009

Emílio Santiago "Feito para Ouvir"

Antes das digestivas cançonetas em horário nobre, do exercício pronto-a-ouvir da série “Aquarela Brasileira” ou de sublinhar cochichos românticos nas novelas das oito, foi numa mão cheia de álbuns inicial que Emílio Santiago concentrou repertório ajustado à grandeza da sua voz. É um facto que o seu primeiro LP, de 1975, é hoje visto como um manifesto geracional, e que “Brasileiríssimas”, de 1976, o qualificava já – até no título – como um superlativo absoluto sintético para a verdade musical brasileira, mas de pouco serviriam os axiomas se não tivesse, logo a abrir 1977, gravado este programático “Feito Para Ouvir” com arranjos para quinteto de jazz de Laércio de Freitas. Porque será relativa ao génio a sua decisão de, com 21 anos, olhar para trás e recuperar a idiomática subtileza romântica de Dick Farney, Johnny Alf ou Pery Ribeiro como se, num fim de noite, estivesse de volta aos bares em que se tinha estreado a cantar o fim do amor. Durou um instante: meses depois, com “Comigo É Assim”, estaria novamente com os olhos postos no futuro. Mas foi nesta insuperável obra-prima que – a par de Nana Caymmi em “Nana” ou de João Gilberto em “Amoroso” – tornou exacta a música com que os outros apenas sonhavam.

29 de agosto de 2009

Dolores Duran "Entre Amigos"

Nasce o mito entre o que se sabe, o que se supõe e o que se deseja que se manifeste real. E não haverá terreno mais favorável ao seu desenvolvimento que o da Música Popular Brasileira. Porque, lá está, lhe é por vezes contrária a marcha do tempo. Basta relembrar as mortes de Elis Regina aos 37 anos, de Maysa aos 41, de Sylvia Telles aos 32 ou de Dolores Duran aos 29 – cada uma à sua maneira responsável pela criação de um definitivo paradigma de interpretação no feminino, mas apenas Dolores deixada, em 1959, às portas de um novo mundo. Ela que em ‘Estrada do Sol’, composta com Tom Jobim, parecia até adivinhar que a bossa nova se escondia na próxima curva. Mas essa é na sua memória uma excepção: Duran foi sempre relembrada como a humilde menina da rádio que se profissionalizou aos 12 anos, se estreou na Boate Vogue aos 16 e acabou a compor existencialistas clássicos da ‘dor de cotovelo’ como ‘Se é por Falta de Adeus’, ‘Solidão’, ‘Por Causa de Você’ ou ‘A Noite do Meu Bem’. O que não deixando de ser verdade, é ingrato. Porque não escapa à tragédia do samba-canção fatalmente derramado sobre mau amor e pior bebida e trai um momento de invulgar pluralidade estética marcado pelo jazz nocturno em bares como Drink, Little Club ou Baccarat, por dezenas de LPs instrumentais com indicações como “para dançar” ou “para animar sua festa” e em que tudo era “em HI-FI”. Vinda desse período, a música neste CD – registada informalmente entre amigos – é tão importante quanto a que João Gilberto gravou em 1958 em casa de Chico Pereira (e este ano publicada no blogue Toque-Musical). E revela uma cantora em pleno domínio da sua arte deixando-se ir por ‘Cry me a River’, ‘Cheek to Cheek’, ‘Body and Soul’, ‘Over the Rainbow’ ou ‘Makin’ Whoopee’ até por fim e para sempre se perder dentro das suas canções preferidas.

22 de agosto de 2009

Kronos Quartet "Floodplain"

Pegando na metáfora sugerida pelo título deste álbum, há algum tempo que na discografia do Kronos Quartet crescia o murmúrio das águas. Bastava ignorar uma fidalguia estilística aqui ou o indulgente culto do exotismo acolá para que a bonomia face ao seu mitificado ecletismo não desviasse a atenção do essencial. E adivinhava-se que – correndo fragas, escavando as vertentes das montanhas, alagando pauis e estremecendo as profundezas do remanso – haveria a torrente criativa de galgar as margens e, na sua passagem, tudo arrastar até que nada ficasse como antes. Terá tanto de previsto quanto de fortuito que a ideia se concretize plenamente num disco transnacional consagrado às planícies de aluvião e à consequência das cheias. E também na análise póstuma da obra do quarteto se reconhecerá este ponto como o do definitivo ensaio sobre a fertilidade. Mas ao impulso cumulativo normalmente patente nas suas acções acrescenta-se agora uma subversiva visão que, de tão urgente e vigorosa, dispensa a piedade. É essa a característica que com maior exactidão confirma a sua presente clarividência intelectual.

Naturalmente, olhando para 35 anos de comportamentos artísticos de risco, não deixa de impressionar que uma fortaleza estética desta magnitude se prove tão flexível. Para tal contribuirá uma prática de nomadismo cultural que – de “Pieces of Africa” (1992) a “Kronos Caravan” (2000) – se manifestou singularmente inclusiva e de indiscretíssima exuberância. É aliás a gravação de 2000, ao vasculhar recantos do globo em peregrina missão de salvamento, que mais se presta à pretérita categorização de “Floodplain”. Mas aí, a reflexão sobre realidades periféricas aos centros de poder – do português Carlos Paredes ao húngaro Rezsö Seress – era acessória da quimera, insistindo-se num tom de efabulação sujeito ao facciosismo e à dramatização que atraiçoava as origens. Ainda assim, há entre esse e este registo um contínuo de justificável evidência: abria um e fecha o outro com peças da sérvia Aleksandra Vrebalov. Aqui, “… hold me neighbour, in this storm…” é paradigmática: quase uma trágica parábola para a desintegração política, ao longo de vinte minutos nela retumbam trovões, soam os plangentes sinos das igrejas ortodoxas, clamam nas mesquitas os muezzin e uma oração é declamada pela avó da compositora, enquanto as cordas, entre a mais pérfida cacofonia folclórica e uma ventosa fremência soprada da Panónia, flutuam entre os tambores da guerra dos Balcãs.

Mas as ribas do Danúbio são apenas a derradeira paragem. Antes, numa ‘Ya Habibi Ta’ala’ para sempre ajustada ao seu estilo, haverá de se lembrar o Nilo e a voz de Asmahan – ela que em 1944 no ‘grande rio’ encontrou a morte – ou sugerir uma página sálmica cantada na Sexta-feira Santa pela libanesa Fairuz (‘Wa Habibi’). E – com Alim Qasimov – reproduzir com fidúcia o monódico mugham do Azerbaijão numa ondeante versão comparável aos meandros fluviais do mar Cáspio ou – numa composição de Ram Narayan com Terry Riley na tambura – evocar Udaipur, a indiana cidade dos lagos. Não ignorando o drama das regiões permeáveis à devastação das enchentes, importará nestes exemplos – como nos temas provenientes do Iraque, Irão, Etiópia, Turquia ou Cazaquistão – validar, mais que o seu panegírico teor, a total imersão regional e a revelação de tradições musicais ameaçadas por conflitos. E, sobretudo, louvar um audaz controlo narrativo que sobrevive ao cisma, reconhecendo que estas interpretações não diluem fronteiras – destilam-nas naquilo que possuem de mais maculado. Porque, num poético delíquio, o Kronos Quartet mostra hoje o que tantos insistem em ocultar: o arrebatamento de um Mundo em extinção.

15 de agosto de 2009

"Open Strings"

A apresentação pela editora é concisa: o disco A é composto por gravações dos anos 20 com origem no Egipto, Irão, Iraque e Turquia; o disco B, em resposta, inclui novas encomendas. O propósito, no entanto, é indecifrável e permanecerá obscuro. Porque dele resulta um paradoxo temporal em que é o material de arquivo a revelar-se perfeitamente contemporâneo e o incumbido a manifestar-se datado. E na origem – nestas 20 peças de enlevo mediterrânico vindas do pó – reconhece-se, num exaltante desfilar cordofónico entregue às modulações e progressões de escala próprias do taqasim (o segmento de improvisação na música tradicional árabe), um extático virtuosismo que merecia mais que o pasticho. Mas é filosoficamente apropriado que o embate com o Ocidente corresponda a uma reflexão sobre o Tempo e o seu fim. Pois é na relação de um solo de alaúde de há um século com o produzido hoje que, aqui e agora, se denuncia a fabricação da História. Ou, por outro lado, se confirma a “sobrestima do Oriente” diagnosticada por Edward Said. Ainda assim, no ponto de chegada, ressalve-se Sir Richard Bishop através das oliveiras, Charlie Parr em arabescos pelos Apalaches, Steffen Basho-Junghans a evocar John McLaughlin e Paul Metzger a lembrar Sandy Bull.

8 de agosto de 2009

Debashish Bhattacharya "O SHAKUNTALA!"

Narrando a história do ukelele em "The Hawaiian Steel Guitar and Its Great Hawaiian Musicians", Lorene Ruymar relembra a braguinha e o cavaquinho nas malas de cartão de emigrantes madeirenses. Noutro momento crítico recupera a figura de Gabriel Davion, um refém de piratas portugueses arrastado da Índia para os mares do sul que tocava a gottuvadhyam (21 cordas dedilhadas com uma mão enquanto a outra faz deslizar pelo braço sem trastes um cilindro). E conta como, em nova vida de insular boémia, Davion, usando então um canivete, aplicou a técnica ao ukelele lançando um estilo que se provou apropriado à invenção da música country por Hollywood. Por fim, fechou-se parte do círculo quando westerns e filmes de aventuras no Pacífico se tornaram populares em Bollywood a tempo de impressionar um jovem Debashish Bhattacharya. Cada vez mais fundamental quando se fala de guitarras na Índia (a par de Vishwa Mohan Bhatt ou Brij Bhushan Kabra), está aqui acompanhado pelo grupo de percussionistas que a seu lado esteve este ano no FMM de Sines, e parte da cálida metáfora do amor reencontrado – reforçando essa ideia circular do tempo – para hipnoticamente combinar tradições desavindas. Se ao menos o Mundo fosse assim tão simples.

1 de agosto de 2009

"The World is Shaking: Cubanismo from the Congo, 1954-55"

De volta às trevas. E ao território em que se renovam. Ainda que, por uma vez, recordando instantes de esperança. Porque em meados dos anos 50 aí se contrariou a única evidência de séculos: a expurgação da vida humana. E na margem do rio Congo – em Léopoldville (actual Kinshasa) – mais do que duplicaram as almas. Por isso, relativizando (pois logo chegaria Mobutu), se poderá hoje falar de prosperidade. E desse tempo em que à cidade – vindos do campo, de países vizinhos ou distantes – acorreram com as suas canções milhares de emigrantes como se efectivamente tivesse chegado o amanhã. Evoca-se assim o tumulto que então se erguia fora da branca ville colonial – para lá do chamado cordon sanitaire constituído pelo Jardim Zoológico e Campo de Golfe – e que pela noite dentro crescia por bares e salões de baile da negra cité indigène. O momento preciso em que, também na rádio Congolia, artistas locais ultrapassavam o sucesso de Louis Armstrong, Trio Matamoros ou Sexteto Habanero. Tudo enquanto num passo de dança se discutia independência e liberdade. Sublinhando-o, o que se ouve nestas gravações é o som de um povo que se inventa, modernizando-se à força de não se querer deixar arrastar pela ingratidão da sua própria História. Conhece-se o que no período fizeram pioneiros da música congolesa como Henri Bowane, Joseph Kabasele, Nico Kasanda, Vicky Longomba ou Franco, aqui ausentes. E um ano mais tarde já African Jazz e O.K. Jazz precipitariam a chegada de uma nova era. Mas destes – como Adikwa Depala ou Laurent Lomande, obscuros e absolutamente inéditos em CD – nada se sabia e o mais importante se passa agora a saber: ao que soam os mortos quando regressam à vida.

25 de julho de 2009

"Black Rio 2"

Se é verdade que a vida são dois dias, narram-se agora os efeitos que no segundo tiveram as acções do primeiro. Isto é, a consequência na central MPB da suburbana versão-soul de União Black, Miguel de Deus, Copa 7, Toni Tornado ou Banda Black Rio. Mas se esses, reunidos por DJ Cliffy em 2002, tinham uma relação factual com esta história, o mesmo não se poderá dizer dos por ora reunidos. O que, por mais paradoxal que pareça, e independentemente de ter disso consciência ou não, só valoriza os instintos do inglês. Porque melhor reflecte o Brasil dos anos 70 e o ecletismo genético do movimento. E se tudo nasceu na rádio, bailes e colectâneas promovidas por Big Boy, Ademir Lemos e Mr. Funky Santos ou através da acção de Equipes de Som como Furacão 2000, Cashbox e a Soul Grand Prix de Dom Filó, não haverá mais definitiva prova quanto à absorção pela cultura popular brasileira da música negra norte-americana que a inclusão de Stylistics, Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Jackson 5 na banda-sonora de telenovelas como “Ossos do Barão”, “O Bem-Amado” ou “Selva de Pedra”. Aqui, nota máxima para a enxuta ‘Coluna do Meio’ (Zeca do Trombone e Roberto Sax, 1976), a caprichosamente rossiniana (de Diana Ross) ‘Faz Tanto Tempo’ (Renata Lu, 1971), a síncope de Donato em ‘Bananeira’ (Emílio Santiago, 1975), o ebâneo suingue de ‘Supermarket’ (Pete Dunaway, 1974), o samba em fanicos de ‘Bobeira’ (Edson Frederico, 1975) e a ébria cuíca no proto-rap de ‘Poema Rítmico do Malandro’ (Zito Righi com Sonia Santos, 1969). Continua a faltar: Tim Maia. E, no mundo dos inéditos em CD, ficam os pedidos para o terceiro volume: António Adolfo, Eduardo Araújo e Silvinha, Celeste, Devaneios, Don Beto, Cláudia, Paulo Diniz, Erlon Chaves ou Waltel Branco.

18 de julho de 2009

"Sénégal 70: Musical Effervescence"

O subtítulo fala de efervescência. Mas podia bem ter recuperado o termo – négritude – que melhor distingue o essencial da acção cultural senegalesa na década de 70. Porque o ideal de Léopold Senghor – eleito Presidente em 1960 – alastrou-se por todas as artes até, na música, encontrar plena concretização. Isto é, à exploração pelas bandas de Dakar da fertilidade rítmica afro-cubana, da virtude plástica do jazz ou da força expressiva da chanson, acrescentaram-se elementos tradicionais prontos a explodir nas pistas de dança. O que, numa versão mais flexível das authenticité zairense ou guineense, conduziu a uma renovação estética sem constrangimentos geográficos num período de exaltação independentista. Trata-se, por isso, de seguir as assimilações das pioneiras Star Band de Dakar, Star Number One (partindo da rumba rumo ao folclore wolof) ou Orchestra Baobab (entre o cha cha cha e o funk derivado de James Brown, que tocou em Dakar em 1975), e, sobretudo, valorizar a libertária acção de Xalam, Diarama de Saint-Louis ou Watto Siita, o mandingo beat de Guelawar ou o electrizante mbalax da Étoile de Dakar. A selecção – que inclui uma mão cheia de inéditos em CD – é do produtor Ibrahima Sylla, agora empenhado em recuperar memórias que ele próprio ajudou a enterrar.

11 de julho de 2009

Verão

Sir Richard Bishop "The Freak of Araby"
Richard Bishop faz surf no YouTube. Através de Oum Kalthoum descobre as canções de Mohammed Abdel Wahab ou, em filmes libaneses dos anos 70, encontra a guitarra de Omar Khorshid. Evoca um clássico Club Med dos anos 60 (“Solenzara”), acelera o tunisino “Sidi Mansour” e celebra Fairuz. Veloz como Dick Dale numa onda de caramelo. Acaba a encantar dunas.

Lura "Eclipse"
Ao sexto álbum, Lura aproxima-se da fonte. E, em parte como consequência da sua acção, descobre-a transformada. Mas chega de sodade. Porque, numa sizígia estética, alinha com gosto canções de Orlando Pantera, B. Leza, Toy Vieira ou Mário Lúcio e, nas mornas, inclina-se formalmente para Teofilo Chantre. O resto é o som de certas esplanadas lisboetas.

Yemanjazz
Uma Big Band à deriva apela à Rainha do Mar. E, como resposta às preces, a mestiça barca chega à terra prometida. Na travessia socorre-se do Coltrane de “Africa/Brass”, do Hermeto de “Zabumbê-bum-á”, do Don Cherry de “Eternal Rhythm” ou do Fela Kuti de “No Agreement”, temperando exaltação epopeica com a elegância e coerência narrativa de Lins ou Gil.

"Mali 70: Electric Mali"
Na segunda década de independência, subsidiada pelo regime de Moussa Traoré, a música do Mali está em chamas. E à ideia de se partir rumo à identidade perdida sobrepõe-se o desejo de modernização. Electrificam-se tribos, chega-se ao funk dogon, ao r&b mandingo, ao afrobeat cósmico e implodem os mais crus, incendiários e expansivos sons da África Ocidental.

"Panama! 2 – 1967-77"
De istmo a canal, elevou-se o ordenamento do território a verdade social. E só quando as relações humanas ganharam fundo nesta roda-dos-ventos estética – cumbia colombiana, mento jamaicano, son cubano ou plena porto-riquenha temperados pelos vapores de Nova Orleães – se preparou terreno para a emancipação. Orgulho na pista de dança com ouvidos no El Bairro.

4 de julho de 2009

Super Rail Band "Belle Époque 3: Dioba"

Em “In Griot Time”, a crónica sobre os sete meses passados com Djelimady Tounkara no Mali, Banning Eyre atribui a Ali Farka Touré uma espantosa afirmação: “podemos ensinar-lhes [a John Lee Hooker e demais bluesmen] melodias africanas durante dez anos sem repetir uma única nota”. Ignorando a fátua soberba do guitarrista de Niafunké, a frase firma África – por tratar das origens do Mundo – enquanto inesgotável reservatório de invenção musical mas também como um diverso território infinitamente ignorado. E talvez seja importante dizê-lo. Porque hoje, a ávida redescoberta da sua mais singular música popular nem sempre traduz as circunstâncias da sua criação nem, muito menos, lhe permite reconhecer a categórica complexidade com que sempre se impôs. Por isso, em boa hora chega o terceiro volume da série dedicada àqueles que, em causa própria, promulgaram uma estética de lasso sincretismo apontado a uma cosmopolita pista de dança (o bar do hotel da estação ferroviária de Bamako), capaz de assimilar afrobeat, rumba, soul, jazz, tango, highlife ou bolero na tradição mandinga e nas narrativas dos griôs. 18 canções gravadas entre 1973 e 1983, e mais de 120 devorantes e indomáveis minutos de Tounkara, Salif Keita, Mory Kanté ou Tidiani Koné a comprovar a asserção de Touré.

27 de junho de 2009

"Legends of Benin"

É da desilusão com as origens que trata quem longe de casa procura um sentido para a vida. Disso e, neste particular, do abraçar do antigo impulso que identifica o regresso a África como uma cura espiritual. E num tempo em que a armadilha socrática dos motores de pesquisa apaga mais realidade do que a que revela, não terá melhor missão o activista que ruma ao Velho Continente como quem remenda um coração partido. Assim chegou a Vampi Soul à Nigéria, a Soundway ao Gana, a Oriki ao Mali, a Sublime Frequencies ao Sara Ocidental ou a Analog Africa ao Benim. Numa acção editorial capaz de restabelecer a figura do DJ ao serviço da clarividência estética. E é apropriado que se imponha agora esta antologia que – evocando a obra de Gnonnas Pedro, El Rego, Honoré Avolonto e Antoine Dougbé gravada entre 1969 e 1981 com bandas como Poly-Rythmo, Black Santiago, Commandos ou Panchos – parte da região que assombrou as encruzilhadas da mais significativa música popular do século XX. Porque do Benim, com os princípios do vodun, seguiram os sons que se espalhariam pelo Delta do Mississippi na errância de Robert Johnson e nos ecos do primeiro jazz, mais tarde relembrados nas receitas de Dr. John, Jimi Hendrix ou Miles Davis (“Bitches Brew”). Aqui, testemunha-se o impacto dessa descoberta – também graças à popularidade de James Brown – numa produção local que havia já assimilado o highlife, o juju, o afro beat e a rumba congolesa. Ou seja, o funk enquanto abanão estrutural naquilo que pela vizinhança faziam Orchestra Baobab, King Sunny Ade, Super Rail Band, Ambassadeurs do Motel, Fela Kuti ou Franco. E, na fantasia de uns Meters entregues ao jazz etíope, dos Santana perdidos em Memphis ou de Ray Barretto ao lado de Sam Cooke, a própria matéria que renova o sonho.

20 de junho de 2009

Sublime Frequencies (Omar Souleyman e Group Doueh na Gulbenkian)

Que Marshall McLuhan não cunhou a expressão “aldeia global” para que volvidos 50 anos se vendessem entradas na Dubailand será um facto. Mas talvez tivesse deixado a teoria amadurecer na gaveta se supusesse que a grande questão sobre tecnologia na mente das crianças da Era-Magalhães viria a ser: ‘antes da Internet, como se procurava no Google?’. Terá de se lhe perdoar a católica tendência de aspirar ao infinito e nele identificar a bondade. Porque com maiores ou menores revoluções no acesso ao conhecimento e à informação, o Mundo, naquilo que realmente conta, não mudou muito desde que há um século Mark Twain seguiu a linha do Equador tropeçando em aforismos como o de que a verdade – por não ter de se limitar ao possível – é mais estranha que a ficção.

A Sublime Frequencies lembra isto e muito mais. O impacto daquilo que faz tem hoje o efeito de se sugerir que o Mundo real só começa depois de terminada a última página de resultados num motor de pesquisa. Isso, porque contraria o discurso de homogeneização cultural e determinismo antropológico tantas vezes coincidente entre os mais activos agentes na ‘música do mundo’ e qualquer campanha publicitária que garanta férias de sonho. Mais concretamente, descarta um trunfo que de tão jogado esgotou já a capacidade de surpreender: o da autenticidade. E assim traz à memória a declaração de Edgar Morin sobre o Cinéma Vérité, de que, das duas uma, através dele se pretende revelar a verdade ou colocar a problemática da verdade. É uma estratégia que evita categorizações de mercado sem se socorrer da ingenuidade optimista dos manifestos.

Desde 2003 que – estabelecida então por Alan Bishop com o seu irmão Richard Bishop e o videasta Hisham Mayet– desafia convenções. Mantendo-nos na metáfora do Cinema, poderíamos, para a qualificar, evocar as ‘etnoficções’ de Jean Rouch, mas, na prática, a editora encontrou um meio em tudo mais alegórico para a compreensão das suas construções: a rádio. No seu catálogo, encontramos em “Radio Java”, “Radio Morocco”, “Radio Palestine”, “Radio India” ou “Radio Thailand” uma série com a ambição de, numa concentração quase hiper-realista, representar um certo tempo e um certo espaço. São gravações in situ de transmissões em onda curta – algumas com mais de 20 anos e sofrendo todo o tipo de manipulações, cortes e colagens – pelas quais se adivinha um clamor de vozes, música, anúncios e estática na cacofonia própria do que vive em simultâneo. É uma apropriação de memórias tanto quanto a sua invenção e a sua partilha. E, no limite, uma alteração de paradigma na mediação etnomusicológica, capaz de mostrar culturas locais fervilhantes, em que acordes de uma canção dos Rolling Stones incluídos no repertório de uma banda de garagem tailandesa não causam mais espanto que uma batida de bossa nova evadindo-se do éter palestino. Daí que sugestões de imperialismo cultural na sua acção se remetam para a condição de preconceito de quem tem as lentes postas do avesso.

A sua perspectiva, como era a das bem-intencionadas Folkways, Nonesuch Explorer Series ou Chant du Monde, combina a diletante inclinação para o exótico do viajante com a propensão para o trabalho exaustivo do arquivista. E é inédito o propósito de preservar a diversidade num conjunto de manifestações artísticas muitas vezes contraditórias entre si e, regra geral, resultantes de embates estéticos com o Ocidente. Porque, sem condescendência moral, não hierarquiza a produção com que se cruza. Valida compilações como “Ethnic Minority Music of Northeast Cambodia” e antologias de características imprevisíveis como “Princess Nicotine: Folk and Pop Music of Myanmar (Burma)”. Pelo caminho, revela o que mais ninguém tem registado de forma abrangente e sistemática: a pop urbana do Iraque, da Birmânia, da Indonésia ou da Tailândia. A consequência da sua audição é devastadora e obriga a uma instantânea relativização da imagem tradicional de cada país. E não será por acaso que se sucederam volumes consagrados à Coreia do Norte, Iraque ou Síria no preciso momento em que o valor do ‘mal’ impregnava discursos políticos. Contrariar a engenharia social levada a cabo por governos e grupos de pressão evidencia ainda uma herética dimensão eminentemente biográfica: Alan e Richard são de origem libanesa e, durante mais de duas décadas, formaram, com o já falecido Charles Gocher, os Sun City Girls, banda capaz de reunir resíduos musicais de todo o Mundo numa actuação, num disco, num tema. Para alguns, a Sublime Frequencies servirá para revelar a fundação de um grupo que parecia saber tudo aquilo que aos seus fãs era interdito.

Seria uma questão de tempo até que a contemporaneidade se impusesse na agenda da editora. Fiel aos seus princípios, chega graças à descoberta de nomes tão fascinantes e enigmáticos quanto os que nesta sua digressão traz a Lisboa. O Group Doueh, proveniente do Sahara ocidental, evoca o funk e o rock psicadélico mas com instrumentos cheios de areia e história, crus, secos e fossilizados, sacudidos pelas vozes e pela guitarra num arremesso sensual que sintetiza devoção e irredutível independência desde a costa da Mauritânia até aos ecos de Hendrix pelas margens do Mississippi. Omar Souleyman é sírio e propõe algo de radicalmente diferente: entre percussionistas proto-Miami bass e um teclista a lembrar um Tomita-sob-ácidos, canta e fala em vertigem sobre um fundo sonoro pimbadélia-em-esteróides que faria os sonhos arábicos de Kanye West. A música do Mundo não fica mais estranha e real do que isto.

13 de junho de 2009

Martinho da Vila "O Pequeno Burguês!!"

Abre com um elegante inédito (‘Filosofia de Vida’) e diz logo ao que vem: “Meu destino eu moldei / Qualquer um pode moldar / Deixo o mundo me rumar / Para onde quero ir / Dor passada não me dói / E nem curto nostalgia / Eu só quero o que preciso / Pra viver meu dia a dia”. E se há tendência que sempre o definiu foi precisamente a que equilibrava razão e fé, e que Martinho cantou como “tenho fé na razão”. Esse diálogo entre determinismo e liberdade é, aliás, constante ao longo dos seus 40 anos de carreira. Por sinal, não se imagina nenhum outro sambista capaz de renunciar à nostalgia na noite em que comemora 70 anos de vida. O que é consequência de outro factor determinante na sua trajectória: o culto da fraternidade. Daí que, no samba, seja o maior dos estóicos. Nessa perspectiva, é natural que este concerto em 2008 gravado no Teatro Fecap, de São Paulo, inclua clássicos de 1969, 70 e 71 – como ‘Casa de Bamba’, ‘Pra Que Dinheiro’, ‘O Pequeno Burguês’, ‘Tom Maior’ ou ‘Menina Moça’ – em que celebrava sobretudo a comunidade, a família e a natureza. E é paradigmático que seja nos temas em que está só, cantando a capella, que, pelo coro do público, transpareça a verdade da voz da sua gente.

5 de junho de 2009

Carlos Martínez “Atahualpa Yupanqui – Obra Completa Para Guitarra (Composiciones Propias)”

Portugal percebeu-o bem. E não foi apenas para apadrinhar Abril que, um dia, don Ata ‘saudou’ Zeca Afonso evocando mais o sopro do vento do que a vontade dos homens. É que não será a distância a separar quem, em países cortados ao meio, soube ao verdugo responder com uma poética de flores de estio. E se, por vezes, a política mais não faz do que mistificar valores inscritos na terra, o que dizer de quem – na sua Argentina – soube reclamar um lugar no coração geográfico de um país de forma a melhor entender o que lhe ia na alma? E, para mais, criando um estilo que – como por cá o de Paredes – só não fez escola porque se revelou inimitável. Daí a impossível tarefa do guitarrista Carlos Martínez e o paradoxo em que assenta o seu absoluto triunfo. Pois constata que, mais do que a compreensão do tempo cronológico, em Yupanqui é necessário reconhecer aquilo que a filosofia apelida por ‘tempo oportuno’. Isso, e a aceitação de uma cumplicidade geográfica que – por entre sarças e canaviais, nas serranias e nos planaltos – se revela sempre que numa decantação folclórica o sangue se mistura com as cordas e a madeira. Do andino sonho de tocar a lua à descida da cruz de quem canta errando pela pampa, esta é a música enquanto metáfora de silêncios.

30 de maio de 2009

Edu Lobo e Chico Buarque "O Grande Circo Místico"

Não terá sido a primeira nem a última vez que uma tenda de circo se armou em torno de um poema. Mas foi das poucas em que, a pretexto de olhar nos olhos o Criador, o Homem não se ajoelhou. É que – há na vida que aceitá-lo – nem sempre o degredo se pinta com a cor do pecado. Por isso, para que subam ao palco, que se expulsem do paraíso os actores – é o melhor destino dos que desejam em segredo. “O Grande Circo Místico”, pela mão de Naum Alves de Souza e do coreógrafo português Carlos Trincheiras, ergueu-se em 1982. A sua banda-sonora garantiu-lhe a eternidade. Esta terceira versão em CD difere da de 1993 (Velas) mas é idêntica à de 2002 (Dubas): cá estão as canções feitas de luz e sombra, as vagas valsas, maltrapilhas marchas, ornatos oratórios. E a bela leveza das bailarinas, o pranto dos palhaços, o indecoro das coristas. Com Milton, Gal, Gil ou Simone nas vozes dos anjos, e uma barca de insuperáveis instrumentistas (António Adolfo, Nelson Ângelo, Dorothy Ashby) empurrada pelo sopro de uma big band e embalada por uma ondulante orquestra de cordas. Na plateia sorriem Weill, Richard Strauss, Bernstein, Sondheim, Rota, Jobim e Miles. No momento em que explodiu o BRock, não houve melhor túmulo para a MPB. Obrigatório.

23 de maio de 2009

Levitts "We Are the Levitts"

Chamam-lhe o ‘ano que nunca acabou’ – talvez porque não se possa matar de vez a esperança. Pois com a chegada da Primavera, de Praga a Lisboa, renovou-se então a fé no Homem sem garantias sobre a justiça do gesto. E, da Cidade do México a My Lai, e de Martin Luther King Jr. a Robert Kennedy, só o sangue fez a crónica definitiva desse tempo. Por isso – como relembrou há pouco “Hear, O Israel” – muito dirá da força da utopia que artefactos de 68 regressem ainda capazes de animar espíritos a uma realidade em que não se impôs a ‘nova era’. Não terá sido outra a razão que levou Al, Stella Levitt e os seus sete filhos a cantar mensagens de paz para o futuro. E unindo – antes de Steve Kuhn e Karin Krog – o que raramente se juntou: jazz e sunshine pop. Situando-se – graças à presença de Pete Yellin, Ronnie Cuber e Chick Corea – entre as “directions in music” apontadas por Miles Davis em “Filles de Kilimanjaro” e Roger Nichols, Free Design ou Sérgio Mendes (há uma versão, em português, de Jobim). Uma pérola.