25 de abril de 2009

Maysa "Voltei"

Na alvorada de um novo mundo há geralmente outro que se arruína. A fechar 1959, Maysa, cansada de digressões, de dois álbuns por ano, amantes e tentativas de suicídio, entra em depressão com a morte de Dolores Duran e, com 90 quilos, é admitida nas urgências. Desintoxica-se, plastifica-se, regressa a estúdio e diz: “Voltei, com meus olhos, com meu verso, e a todos eu peço que me aceitem como sou”. A poeira assentou. Como João Gilberto, abre o LP com uma aveludada ‘Meditação’, deixa a dor de corno para Nora Ney e, batendo Sylvia Telles e Alaíde Costa, grava a mais doce versão de ‘Dindi’ de 1960. Com lúcidas orquestrações de Enrico Simonetti, propôs – a par da Elizete Cardoso de “A Meiga Elizete” – o mais belo disco feminino do ano. E num instante trocou as voltas ao destino. Em 1961 gravaria o infido “Barquinho” (com consequências devastadoras para o núcleo central da bossa nova) e até à morte, aos 41 anos – entre escândalos e temporadas em Lisboa –, cantou “Se o meu mundo caiu eu que aprenda a levantar”. Em 2009, com a exibição na Globo de “Maysa – Quando Fala o Coração” (mini-série de Jayme Monjardim, seu filho) e a reedição dos seus discos, provou-se que nunca aprendeu.

18 de abril de 2009

"Tudo Ben (Jorge Ben Covered)"

Jorge Ben Jor, como há vinte anos se chama, nunca se deu bem com a crítica porque a crítica raramente premiou o sucesso. Além de que o crítico, como um explorador marítimo costeiro e temente a Deus, apanha banhos de sol mas não aprende línguas estranhas. Faltou reconhecer-lhe em ‘Uála Uála-lá’, de 63, um acto civilizacional semelhante àquele em 59 idealizado pelo ‘Hô-bá-lá-lá’ de João Gilberto. Se a canção de João ficou na sombra de ‘Chega de Saudade’, a de Ben deixou de existir mal se ouviu ‘Mas Que Nada’ – nos EUA não se percebia “samba de preto tu”.

O anedotário benjoriano tem costas largas (o processo contra Rod Stewart, a mudança de nome), ainda que assente nessa ideia de ressurreição à custa de um tema só. É uma meditação apropriadamente pascal, e Jorge, tão humano ao jamais exercer soberania, pacificou-a há muito. Nele, contrariando-se a noção de Einstein de Tempo, tudo acontece de uma só vez, como no “amanhã eterno” que Borges leu em Unamuno. E o que quantificou em oito LP de originais, de “O Bidú – Silêncio no Brooklin” em 67 a “África Brasil” em 76 – uma concentração de energia capaz de suster o mal do mundo nos anos de chumbo, de intuir pensamento colectivo sem politizar mais que a cor da pele, de se tornar no ritmo da vida e refundar a felicidade enquanto utopia universalista –, não tem paralelo tão rigoroso (além do óbvio – Beatles, Dylan, Marley, Stones, Stevie Wonder…) na música popular.

Esta antologia chega-nos pela mão dos DJ Sean Marquand e Greg Caz e, incluindo raridades (Marijô, Cyro Aguiar ou Salinas), é exemplar. As versões reunidas – de temas inéditos na voz do seu autor ou com estreia em “Força Bruta”, “Negro é Lindo” ou “Ben” – situam-se maioritariamente entre 69 e 72, quando a sua produção exactificava todas as outras: temos Elza Soares penteando o samba com um afro em ‘Pulo, Pulo’, Osmar Milito sincreticamente suspenso entre a síncope de João Donato e o espraiar de Marcos Valle em ‘Rita Jeep’, Wilson Simonal, seu intérprete perfeito, sintetizando toda a escola vocal masculina em ‘Zazueira’ e ‘País Tropical’ ou Os Brazões estilhaçando o tropicalismo até encontrar o funk mais enxuto em ‘Que Maravilha’ e ‘Carolina, Carol Bela’. A ausência dos peso-pesados explica-se pela criticada relutância da Universal em licenciar repertório – no mesmo período, e de memória, pertencem ao seu catálogo ‘Jorge de Capadócia’ por Caetano, ‘Tuareg’ por Gal, ‘Queremos Guerra’ por Gil, ‘A Minha Menina’ pelos Mutantes ou ‘Bicho do Mato’ por Elis. Não importa. O que está e o que falta é uno, servindo apenas para relembrar que o futuro da MPB não é mais que um tempo por onde passou já Jorge Ben Jor.

4 de abril de 2009

Alaíde Costa "Coração" e Rosinha de Valença "Cheiro de Mato

Alaíde Costa esteve na bossa desde o ano zero. E entre 59 e 65 patenteou um modelo interpretativo superado apenas por Sylvia Telles. Mas estava esquecida quando em 72 Milton Nascimento a convocou para “Clube da Esquina”. Reanimada, gravou uma obra-prima (com Oscar Castro-Neves) e em 76 lançou “Coração”, numa actualização de repertório e estilo capaz de acolher as expansivas tendências de João Donato (autor dos arranjos), Nelson Ângelo ou Toninho Horta. Confiante e moderna, estreou aqui uma mão cheia de originais que hoje se comprovam uma incumprida promessa de futuro. Nos últimos 30 anos editou apenas seis discos – e é este que contextualiza os outros. 
 Rosinha de Valença era guitarrista, apresentada como versão feminina de Baden Powell. Em 65 partiu para os EUA com Sérgio Mendes e gravou com Bud Shank e Donato. Mas com “Cheiro de Mato”, também em 76, mudou tudo e decidiu dar voz a um imaginário rural de meninice, virando-se para memórias de terra gretada pela seca, de noites de lua cheia, do madrugador chilrear no arvoredo, dos badalos da boiada, dos cascos e pedras, cantando num tom de uma impoluta candura capaz de, no dueto com Miúcha, passar das palavras às lágrimas. Acompanhada por Sivuca, Célia Vaz ou Francis Hime, reconduziu a MPB a uma pureza virginal e um ano depois até Elis dizia ser caipira. Ainda tocou com Bethânia, mas, sem mais oportunidades, foi partindo até abandonar o país. Voltou em 92 e, na sequência de um AVC que a deixou 12 anos em coma, aí faleceu em 2004. Nesse ingrato ano de 76, como nos LPs de Edu Lobo, Milton, Tom Zé, Jorge Ben ou Chico Buarque, a maior ilusão foi a de quem dentro de si procurou a via da esperança.