26 de fevereiro de 2011

Bossa Nova and the Rise of Brazilian Music in the 1960s (Livro, Soul Jazz, 2011)

Quem com o género tenha tido contacto saberá ao que vem. Ou talvez não. Porque é provável que logo o seu espírito se iluda por uma profusão de símbolos (mar azul sob um céu mais azul, quadris trigueiros em areia branca, coqueiros suspensos sobre ondulantes calçadas, a luz de infinitas constelações brilhando no olhar dos amantes, um arco-íris de biquínis, etc.) que, em rigor, transpiram bossa nova mas que na sua mais material e elementar representação – em disco, entenda-se – raramente figuraram. Nem era preciso. Pois nenhum ardil semiótico perturbaria a compreensão de uma imagética tão evidentemente perceptível na lírica de ‘Corcovado’ (“Da janela vê-se o Corcovado/ O Redentor, que lindo”), ‘Samba do Avião’ (“A morena vai sambar/ Seu corpo todo balançar/ Rio de sol, de céu, de mar”), ‘O Barquinho’ (“Dia de luz/ Festa de sol/ E o barquinho a deslizar/ No macio azul do mar”) ou, naturalmente, das expressivas e sintéticas “Rio” (“Rio, serras de veludo// Que é dourado quase todo dia/ E alegre como a luz// […] O meu Rio é lua/ Amiga, branca e nua/ É sol, é sal, é sul/ São mãos se descobrindo em tanto azul”) e ‘Garota de Ipanema’ (“É ela a menina que vem e que passa/ Num doce balanço/ Caminho do mar”).
Talvez por isso – por uma abundância de versos que, em frequente assonância e monossilábica inclinação, espelhavam uma produção musical assente em desmaios rítmicos, mansas vozes e hipnóticas harmonias – se considere que privilegiando geometria, usando limitadas paletas de cor, reduzindo figuras à sua forma essencial ou tendendo para o monocromatismo estavam também os designers encarregues da arte dos seus LP a traduzir-lhe as características fundamentais (erro de percepção dos organizadores deste livro). Na verdade – como não se cansou de dizer o mais influente de entre eles, César Villela –, não seria bem assim. Não só se dá o paradoxo de serem muito distintos uns dos outros os registos de bossa como era ainda comum que a definição das suas capas precedesse a fixação do repertório musical. Ter-se-á antes dado o caso de ambicionar quem lhe coordenava a comunicação visual honrar-lhe o radical estatuto criativo. E porque nenhuma novidade trariam serrados, praias, pares dançantes, cantores em pose professoral ou decotadas musas – disso estavam já as lojas cheias em vinis de bolero – tratou Villela na Odeon e depois na Elenco (e Patrícia Tattersfield na Forma, Moacyr Rocha na Odeon, Tide Hellmeister na RGE, António Melero na Farroupilha, Maurício e Joselito na Musidisc e Equipe, Paulo Brèves na Philips ou a Gegraf para a Som/Maior) de procurar equivalente impulso nas artes plásticas, cruzando tipografia futurista com abstraccionismo e construtivismo e repetindo as marcas Bauhaus, De Stijl ou Cercle et Carré detectadas no concretismo brasileiro. O álbum homónimo do Tamba Trio, “Apresentamos” de Tânia Maria, “Repeteco” dos Bossa 4 ou “Fino do Fino” de Elis Regina não destoariam junto aos quadros de Hermelindo Fiaminghi, Hércules Barsotti ou Luiz Sacilotto.
Hermelindo Fiaminghi "Alternados Horizontal e Vertical"
Hercules Barsotti "Conexões Cruzadas"
Luiz Sacilotto "s/t"
Nessa perspectiva são som e imagem filhos de um tempo de ruptura – o do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, resumido no lema “crescer cinquenta anos em cinco” e com paradigma na construção de Brasília – que alavancou obsessivamente a modernidade, não se estranhando tal conceptualismo em objectos explicitamente comerciais (marcados ainda pela colocação de títulos na diagonal, em “Vagamente”, de Wanda Sá, “A Nova Bossa é Violão”, de Paulinho Nogueira ou “Impulso”, dos Catedráticos, pela contínua utilização de fotografia a preto e branco – quase sempre de Chico Pereira – em alto contraste, em “O Amor, o Sorriso e a Flor” de João Gilberto, “Bossa Balanço Balada” de Sylvia Telles ou “Som Definitivo” do Quarteto em Cy, e pelas directas referências ao design e à pintura, como fez Villela com um “Bossasession” próximo de Saul Bass ou um “À Vontade”, de Baden Powell, a evocar o traço das mulatas de Di Cavalcanti).
Montagem de posters de Saul Bass
Emiliano Di Cavalcanti "s/t"
Mas o estilo não viveu apenas desta especificidade artística, geográfica, política e económica. E, porque ultrapassou fronteiras, a sua história fica incompleta sem a inclusão das muitas edições fora de portas (uma omissão de Baker e Peterson que exclui assim o importante trabalho de Pete Turner para “Tide”, de Jobim, com um Cristo Redentor a erguer-se num manto de nevoeiro azulado, ou “We and the Sea”, do Tamba 4, com aquele barco em suave deriva num mar dourado). Por outro lado, por mais difícil que seja encontrar discos que se esgotem na estética da bossa (mais vale aceitar o mito criacionista e colocá-la a girar unicamente na órbita de João Gilberto), nada explica as omissões de Elza Laranjeira, Alaíde Costa, Agostinho dos Santos, João Donato, Johnny Alf, Tito Madi, Nana Caymmi, Dick Farney, Chico Feitosa, Lenita Bruno, Isaura Garcia ou Ana Lúcia. E levando à letra que se pretendia aqui expandir o retrato da década (com espaço para a canção de intervenção, o jazz e os primeiros passos dos tropicalistas) como ignorar o samba, o rock ou a jovem guarda?

Esta antologia – que reproduz 140 capas (longe das 700 reunidas por Caetano Rodrigues e Charles Gavin em 2005 para “Bossa Nova e Outras Bossas – A Arte e o Design das Capas dos LPs”) e inclui, em inglês, um competente ensaio cronológico e telegráficas biografias de Villela, Nara, Vinicius, João Gilberto, Baden Powell ou Jobim – tem, com todas as suas lacunas, o mérito de relembrar como através do transitório se atingiu a permanente. E porque ninguém poderá acrescentar ao que nasceu já com um pé na eternidade, perdoa-se que nada traga de novo.

19 de fevereiro de 2011

“The Sound Of Siam: Leftfield Luk-Thung, Jazz & Molam In Thailand 1964-1975” (Soundway, 2010)

A música popular tailandesa – nas suas mais variadas manifestações – tem na última meia dúzia de anos ganho representação ocidental através de um conjunto de edições nem sempre imunes ao proselitismo. Até aí nada de novo. Semelhante impulso baseado na preeminência moral serviu recentes antologias consagradas à pop nigeriana, indonésia, congolesa, cambojana ou peruana. Mas ouvindo os três volumes de “Thai Beat A Go-Go” (na Subliminal Sounds), os dois de “Thai Pop Spectacular” (na Sublime Frequencies), o par de “Molam: Thai Country Groove from Isan” (também na Sublime Frequencies) ou “Thai Funk” e “Luk Thung! The Roots of Thai Funk” (na ZudRangMa, baseada em Banguecoque) torna-se claro que, aqui, o afã da autenticidade perde normalmente terreno para uma estratégia mais estimulante, que é a da caricatura. A comprová-lo surge já “Thai? Dai! The Heavier Side of the Luk Thung Underground” (Finders Keepers) – cujo organizador, por sinal, é o mesmo de “Sound of Siam”, Chris Menist – a abrir com uma excêntrica versão de ‘Iron Man’, dos Black Sabbath. Ou seja, tem neste campo a acção ficado cativa do exotismo. É nesse particular – e no da fidelidade sonora – que das demais difere a investida da Soundway pelo Sudeste asiático. Menist, o britânico que há três anos vive na capital tailandesa e que um artigo da CNNGo apelidou de “Indiana Jones of Thai folk”, conhece, talvez melhor que ninguém, as extravagantes variações sobre Pink Floyd, Lipps Inc., B.T. Express, Santana, Boney M. ou James Brown espalhadas pelas outras compilações. E ainda que, em certa medida, ao trocar simulação por realidade mais não faça do que substituir um artifício por outro, resgata do anedotário cultural uma produção que merece ser discutida pelos seus próprios termos e que nem assim se revela menos hiperbólica e licenciosa. Irrepreensível.

E quando digo anedotário refiro-me a isto (embora, como se costuma dizer, 'nada contra, muito pelo contrário'):

12 de fevereiro de 2011

"Next Stop… Soweto" (Box, Strut, 2010)

Saíram para a rua a tempo do Mundial e logo foram engolidos pela onda das vuvuzelas. Talvez por isso tenham sido recentemente recuperados numa edição limitada estes volumes de “Next Stop… Soweto” (“Township Sounds From the Golden Age of Mbaqanga”, “Soultown: R&B, Funk & Psych Sounds From the Townships 1969-1976” e o duplo “Giants, Ministers & Makers: Jazz in South Africa 1963-1981”). Ou por, quem sabe, quando todos davam o assunto por encerrado, também as mentes mais sãs se deixarem ocasionalmente afligir pela compulsão da ‘última palavra’. No caso, a que veio com a necessidade de discutir o mérito dos muitos títulos consagrados à produção sul-africana que com a aproximação do Verão de 2010 proliferaram no mercado. Uma oportunista abundância que apenas de forma conjuntural terá desviado as atenções do único – ou melhor, da trilogia – de entre eles com hipóteses de se transformar numa obra de referência. Pois, não sendo completo – omite conscientemente a febre dos tocadores de pífaro (com Spokes Mashiyaneo, pioneiro do kwela e do mbaqanga, à cabeça), paradigmáticos conjuntos vocais como os Black Mambazo ou as Dark Sisters, influentes bandas pop como os Movers ou os Cannibals, autores consagrados (dos Soul Brothers ou Miriam Makeba a Hugh Masekela), corais zulu, neo-tradicionalistas como os Phuzushukela, toda a moda do shangaan português ou formações jazz como os Elite Swingsters ou os Blue Notes –, é nesse respeito o melhor desde “African Jazz ‘n Jive” (Gallo, 2000). Porque, apresentando dezenas de nomes inéditos em CD, evita o artifício de seguir à boleia daqueles que só num discurso de iniciação terão relevância e porque não enjeita a única resposta possível à questão que neste contexto sempre surge: como – durante o apartheid – sobreviviam estas dilaceradas comunidades? Fazendo da música o lugar próprio da esperança.

5 de fevereiro de 2011

Vários “The World Ends: Afro Rock & Psychedelia in 1970s Nigeria” (Soundway, 2010)

“Ergam as mãos e façam as vossas preces, pois o mundo está a chegar ao fim”, cantam os Black Mirrors em ‘The World Ends’. E na Nigéria de inícios de 70 não se podia garantir que à expressão metafórica da banda não correspondesse uma interpretação literal. É que, como relembram os organizadores desta antologia (Miles Cleret, proprietário da Soundway, e Uchenna Ikonne, do blog, e agora editora, “Comb & Razor”), o fim da Guerra do Biafra não implicou propriamente o renascer da esperança. E de nada valia acordar para uma realidade musical animada por ventos de mudança – a da produção anglo-saxónica na década de sessenta – quando o tempo era ainda o da desilusão. Talvez por isso se pressinta uma relação conflituosa entre algumas destas variações e os modelos – promulgados por James Brown, Booker T., Jimi Hendrix e, fundamentalmente, por Osibisa, Cream ou Faces – que lhes serviram de matriz. Por nenhuma outra razão também, numa compilação que evita a palavra afrobeat, não se vislumbra maior sombra sobre estes temas que a do Fela Kuti de ‘Jeun K’Oku (Chop & Quench)’, o single de 1971 de inspiração rock. Pois provou o seu sucesso que mesmo o mais revolucionário dos discursos culturais estagnaria ao depender do conceito da permanência. O que explica a progressiva flexibilidade de Hykkers, Wrinkar Experience ou Funkees. Mas, em rigor, num contexto geralmente descrito como de síntese para as modas internacionais, só se lhe detecta verdadeiramente génio quando se verifica poder de antecipação: Founders 15 ensaiando futuras estratégias dos Talking Heads, Ceejebs prevendo a transformação (de parte) dos Traffic nos Can, Lijadu Sisters (pela mão de Biddy Wright) adiantando-se às ESG ou os Colomach chegando primeiro ao cruzamento tropical em que se encontrariam Clash e Kid Creole. Porque aí se revela enfim algo que não deve nada a ninguém.