29 de outubro de 2011

Caetano e Maria Gadú “Multishow ao Vivo” (Universal, 2011)

Há 20 anos que, salvo um par de excepções, Caetano Veloso alterna a edição de álbuns de estúdio com gravações ao vivo. E, mais do que a adaptação para palco do repertório recente, interessa, naturalmente, apreciar nos registos dos espectáculos as marcas que o tempo deixou no de antanho. Por exemplo, em “MTV ao Vivo – Zii e Zie”, deste ano, a BandaCê transfigura ‘Trem das Cores’ (‘82) ou ‘Irene’ (‘69) e, já agora, sugere estar a um álbum de fazer o (bom) disco que merece. Isto, além das imprevisíveis consequências de interpretar de forma descontextualizada uma peça canónica, como ‘O Homem Velho’ (‘84) em “Multishow ao Vivo – Cê” (2007) ou ‘Araçá Blue’ (‘73) em “Noites do Norte ao Vivo” (2001). Para não falar da (ainda mais) rara ocorrência de encontrarem o seu destino numa situação relativamente instável aquelas pérolas cuja materialização parecia depender de rigoroso controlo laboratorial – ‘O Leãozinho’ (‘77) e ‘Sampa’ (‘78) em “Circuladô Vivo” (‘92) e quase tudo no inesquecível comício que é “Totalmente Demais” (‘86). Seja como for, até agora, e talvez por vaidade, nunca se deu propriamente o caso de Caetano se passear pelo mundo das suas canções como um desiludido demiurgo, incapaz de mostrar amor por aquilo que criou, fatalmente corrompido pelo passado. E o mínimo que se poderá dizer desta parceria com a popularíssima Maria Gadú é que cedeu a tutela da parte mais visível da sua obra – ‘O Leãozinho’ e ‘Sampa’, claro, mas também ‘Beleza Pura’ (‘79’), ‘O Quereres’ (’84), ‘Vaca Profana’ (’86), ‘Odara’ (’77) ou ‘Menino do Rio’ (’79) – a uma voz incapaz de a possuir – o que se traduz nos duetos. Sozinho, em 8 temas, vaza-se em redundância. Já Gadú, a solo em 7, desperdiça o profectício e exaura as suas ‘Bela Flor’, ‘Encontro’ ou ‘Dona Cila’ em tiques de estirpe unplugged.

22 de outubro de 2011

Tinariwen “Tassili” (V2/Co-Op, 2011)

O comprometimento dos Tinariwen com a causa tuaregue – e a extática aceitação por parte de certa imprensa ocidental de uma biografia que começava em campos de treino militar líbios – pareceu tornar-se na última década mais determinante quão mais procedimental se provou a relação do grupo com o rock. E talvez porque, para alguns, o seu reconhecimento enquanto símbolo de uma etnia oprimida reconduzia o género à sua primeva condição, tenham os saarianos aproximado o seu som à dureza das expressões dos seus rostos. Mas ainda que fiquem como o mais importante da sua produção momentos de “Amassakoul” (2003) ou “Aman Iman” (2007) em que uma atmosfera de desencanto se abatia sobre a união de um discurso de dissensão política com libertários rituais de transe psicadélico, a verdade é que dificilmente tornarão a gravar um conjunto de canções tão belo quanto no predominantemente acústico “Tassili”. É aqui que finalmente obrigam a concentrar atenções em músicos em vez de guerrilheiros e em homens em vez de povos. E logo o sublinham – e são as primeiras palavras que no disco se ouvem – quando, em ‘Imidiwan Ma Tennam’, cantam “O que têm a dizer, meus amigos/ sobre estes tempos difíceis que estamos a viver?”, como quem se interroga sobre o instante de incerteza no seio daqueles que há anos aconselham a manter-se unidos. Porque o seu maior triunfo artístico é amargo: implica, quando camaradas seus se preparam para nova insurreição no Mali ou representam a derradeira aliança de Gaddafi, a admissão de que, como qualquer um, só podem ser responsabilizados pelas suas acções. Sem poses, os Tinariwen no seu melhor fazem isto: tocam em torno de uma fogueira com amigos (no caso, Kyp Malone e Tunde Adebimpe, dos TV on the Radio) sobre aquilo que uns teimam em destruir enquanto outros não desistem de sonhar, como numa canção de Woody Guthrie.

15 de outubro de 2011

“Brand New Wayo: Funk, Fast Times & Nigerian Boogie Badness 1979-1983” (Comb & Razor Sound, 2011)

Embora quase se eclipsem quando consigo comparadas, antologias como “Lagos Disco Inferno” ou “The World Ends: Afro Rock & Psychedelia in 1970s Nigeria” abriram o caminho para o que, agora, permite “Brand New Wayo” entender: que, nos quatro anos a que se refere o seu subtítulo, na elusiva democracia de uma endinheirada Nigéria – a da Segunda República, de Shehu Shagari – se puseram em prática técnicas de produção dignas de uma superpotência cultural. O exemplar livro de 80 páginas que acompanha a compilação funciona como uma vibrante parábola de ascensão e queda civilizacionais (com os dividendos do boom petrolífero espalhados por incontáveis sacos azuis e um clima generalizado de festa a acompanhar o afundar do país em dívida), ainda que a música, essa, vá sempre a subir. E em capítulos dedicados a produtores, cantoras, bandas e editoras faz pulsar uma narrativa essencial para a compreensão de uma inflexível agenda de afirmação estética à escala global. Ao ponto de, numa inversão de paradigma, parecerem seus sucedâneos aqueles que de facto ditavam as modas: porque a síntese de funk e disco aqui ensaiada nada deve ao optimismo formal dos Chic de ‘Good Times’, à volúpia dos Heatwave de ‘Boogie Nights’, ao funcionalismo rítmico dos Kool & The Gang de ‘Jungle Boogie’, à sensualidade cativa dos KC & The Sunshine Band de ‘I’m Your Boogie Man’ ou ao oportunismo dos Earth, Wind & Fire de ‘Boogie Wonderland’. Na dilatação de uma fórmula que se imaginava já inextensível – e a que não será indiferente o artifício arquitectónico de Michael Jackson, o absurdo libertário dos Parliament ou o pragmatismo de Rick James e Cameo – é a isto que soam os instintos rapaces de uma era que teve em Kris Okotie, Joe Moks, Amas, Oby Onyioha, Dizzy K. Falola, Bayo Damazio ou Martha Ulaeto arautos de um futuro que nunca chegou.

8 de outubro de 2011

Seu Jorge “Músicas para Churrasco Vol. 1” (Cafuné/Universal, 2011)

Podia ser com uma capa destas que Umberto Eco tinha pesadelos quando no seu “Tratado Geral de Semiótica” denunciava as limitações da mimese icástica. Só na arbitrariedade lógica dos que seguem cegamente as convenções culturais faria sentido representar um título como este com letras em forma de salsicha organizadas em cinco espetos a simular as linhas de uma pauta. Dir-se-á que se trata antes da evocação de um tempo permeável ao kitsch – o dos anos 80 – em que Zeca Pagodinho ou a banda Fundo de Quintal praticaram com outra arte aquilo que, transformado em verbo, acabou por, anos mais tarde, se resumir às intenções de ‘Hoje Eu Vou Pagodear’: “beber uma cerveja bem gelada, dar aquela paquerada/ na loira, na pretinha, na morena, na gracinha, no design da bundinha da mulata”. Porque será no mínimo licencioso imaginar-se este Seu Jorge entregue aos prazeres da carne pelas tardes de domingo de um mundo pré-sida. Isso se, entretanto, e de facto, transferiu para a mulher o valor de que, precisamente em ‘A Carne’, falava com o grupo Farofa Carioca em 1998: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Comprovam-no versos de ‘Amiga da Minha Mulher’ (“vive dando em cima de mim/ […] se fosse mulher feia, tava tudo certo/ mulher bonita mexe com meu coração”) ou de ‘Japonesa’ (“vou dizer arigatô/ eu anteontem comi o seu sushi/ perdidamente apaixonado estou/ quero ser seu tamagoshi”), nos quais continua a criar personagens masculinas com uma sensibilidade de pornógrafo. Seguindo instintos populistas, este primeiro tomo de uma anunciada trilogia decalca os traços formais samba-funk de “Samba Esporte Fino” (a sua estreia a solo, em 2001) sem lhe importar nenhum do carácter. E se, aí, a qualidade da música ainda tornava possível ignorar a lírica, aqui, a sua redundância põe a descoberto o embaraço de cada frase.

1 de outubro de 2011

"AfroLatin: Via Cotonou" (Syllart/Discograph, 2011)

Sobre um terreno pelo qual se lançou luz e sombra em partes iguais, fértil para a prática do vudu e infame capital da Costa dos Escravos, já muito foi escrito (Bruce Chatwin, por exemplo, baseou “O Vice-Rei de Ajudá” na vida do mercador luso-brasileiro Francisco Félix de Souza). Já sobre a sua música popular, essa, pouco se disse. E não será o menor dos elogios esclarecer que, ao reincidir num conjunto de artistas – a que adiciona uma série de nomes inéditos em CD, como Nérose Rythm, Supermen de Cotonou ou Dynharmonie – já reunidos pela Analog Africa em “African Scream Contest” e “Legends of Benin” sob distinto pressuposto, lhe faz esta compilação o mais completo retrato até hoje. Porque se de Gnonnas Pedro, Poly-Rythmo, El Rego ou Black Santiago se deu então a conhecer uma exemplar produção no Benim extraída ao funk e ao afrobeat, quase nada se sabia acerca da sua igualmente modelar investida nos ritmos das Caraíbas. Provando-se agora que a aspereza imprimida em variações de motivos anglo-saxónicos não impossibilitava uma abordagem com maior elasticidade a formas mais melífluas e que foi precisamente à música cubana (há aqui versões de Beny Moré ou Arsenio Rodríguez) que melhor e durante mais tempo se adaptaram. Talvez tenha a ver com o retorno de tantos escravos do Brasil, com o tempero da herança cultural francesa no momento em que os vizinhos Gana e Nigéria subvertiam a britânica ou, quem sabe, seja consequência da adopção pelo regime de Kérékou do marxismo-leninismo enquanto factor de desintegração étnica, mas a verdade é que poucas antologias do período (de meados dos anos 60 a 80) testemunham esta ânsia colectiva em construir uma nova identidade. Ou, então, é por ser este o canto daqueles que, como diz a Poly-Rythmo em ‘Sèmassa’, acreditam que “nenhum de nós ficará para sempre debaixo de terra”.