26 de janeiro de 2013

Moreno and L’Orch First Moja-One “Sister Pili + 2” (Sterns, 2012)



Moreno (nascido Batamba Wendo Morris na antiga Stanleyville, hoje Kisangani, capital da Província Oriental da República Democrática do Congo), naquele que será o menor dos paradoxos que lhe condicionaram a carreira, foi um extraordinário cantor de soul que nunca experimentou o género. Transformando a mesma aspereza vocal de Sam Cooke, por exemplo, numa espécie de entrincheiramento tonal, foi, primeiro no Uganda, com a Orchestra Bana Ngenge, depois na Tanzânia, nas fileiras da Safari Sound, e, por fim, no Quénia, nos agitados e povoados poleiros das bandas Les Noirs, Shika Shika ou Virunga, que ganhou notoriedade enquanto singular sincretista, capaz de unir a expressividade melódica da rumba congolesa às particularidades, maioritariamente, rítmicas do benga queniano, operando revisões tão dramáticas que se tornava quase impossível destrinçar uma da outra. Mas claro que a mais perversa anomalia no seu percurso terá sido a morte prematura em 1993, aos 38 anos, quando a sua cassete “Vidonge Sitaki” vendia que nem chapatis quentes nos mercados de Nairobi. Era, então, um regresso à popularidade obtida dez anos antes com “Sister Pili”, o álbum agora reeditado com um par de irresistíveis inéditos de 1977. Em quatro temas (todos a rondar os 10 minutos), o seu barítono rivaliza guturalmente com os trémulos nas guitarras (o segundo vocalista, Coco Zigo Mike, tratava dos agudos), faz comentário social em kiswahili, lingala e, ocasional e humoristicamente, em francês e inglês com o zelo de um radialista local, enxuta dedicatória amorosa (Pili era, à altura, a sua namorada) e, fundamentalmente, comunica com uma facilidade tão franca que parece dissimular o essencial da sua produção: um inteligente modelo interpretativo e um esquisso arquitetónico da fusão de sensibilidades das costas africanas a ocidente e oriente.

O que aí vem

Música do Mundo


Desconhecem-se os cartazes dos festivais de verão, mas crescem as expectativas em relação ao FMM de Sines, que, para a sua 15ª edição, adianta-nos em primeira mão a reincidência de Amadou & Mariam, bem como, haja paz, de outros compatriotas malianos. Para já, sempre em matéria de concertos, registem-se as iminentes chegadas de Milton Nascimento (Espaço Brasil), Paco Ibáñez (Gulbenkian) e, ainda em fevereiro, Diego el Cigala (CCB e Casa da Música). Depois, com a primavera, aguardam-se odores mediterrânicos na capital com as visitas de Savina Yannatou (CCB) e Jon Hassell (MM) e, entre abril e maio, evocam-se duas idades do flamenco com Dave Holland & Pepe Habichuela (Casa da Música) e a Accademia del Piacere (Gulbenkian). Antes, pelo meio e depois disto tudo, canta-se com o sotaque mais imitado no país: Martinho da Vila, Daniela Mercury e Marisa Monte vêm aos coliseus, Adriana Calcanhotto passeia em cinco cidades, Maria Rita fecha as festas juninas e, no âmbito do “Ano do Brasil em Portugal” (leia-se Lisboa), espera-se um elenco de dezenas na Lx Factory presumivelmente - tem havido confusão nos editais – encabeçado por Passo Torto, Thaís Gulin, Tulipa Ruiz, Wilson das Neves ou Zé Miguel Wisnik.

19 de janeiro de 2013

Kiki Gyan “24 Hours in a Disco: 1978-82” (Soundway, 2012)



No Gana, em Acra, milita ainda adolescente nos Blues Monks, de Ebo Taylor, ou nos Pagadeja, de Ray Allen, mas foi enquanto Kiki Djan que ganhou notoriedade, quando, por entre o expatriado grémio de ganeses e caribenhos reunidos em Londres nos Osibisa, subia ao palco do “Top of the Pops” e se sentava ao teclado para animar pálidas britânicas como se fosse o Stevie Wonder. E ouvindo-se os três álbuns que gravou com a banda encontram-se as sementes – ‘Kangaroo’ em “Osibirock” (1974), ‘Do It (Like It Is)’ em “Welcome Home” (1975) ou ‘Dance the Body Music’ em “Ojah Awake” (1976) – para tão luxuriante produção em nome próprio. Mas é no contexto específico do disco sound tardio, quando o edifício estético em que o género assentava havia já recebido o aviso de demolição mas nas tabelas europeias pupulavam ainda Gonzalez, Skyy, Voyage, Odyssey, Kano, Imagination ou Ottawan, que se compreende o essencial desta colossal manobra de hedonismo. E, nos últimos anos, apenas em “Brand New Wayo: Funk, Fast Times & Nigerian Boogie Badness 1979-1983” se ouviram com o mesmo grau de emoção tantas coisas ridículas (uma eternidade de falsetes cantados como quem exala hélio, violinos tocados com o repentismo da dança rítmica e baixos a ronronar como gatos pançudos). Com mote no máxi “24 Hours in a Disco”, que, em 1979, a Bronze lançou como banda-sonora para bacanais em boates, incluem-se aqui temas de “Feeling So Good” ou do apropriadamente propulsivo “Disco Train”, editados já na Nigéria, onde namorava uma filha de Fela Kuti, tocava com Jake Sollo e chutava e inalava com toda a gente. Produziu mais um par de discos mas definhou, passando por clínicas de desintoxicação e acabando nas ruas a contar histórias de grandeza e desilusão por uns trocos. Faleceu em junho de 2004, emaciado pela sida, sem uma grama daquilo que mais pôs na música: gordura e alegria.

Vinicius Cantuária “Índio de Apartamento” (Naïve, 2012)



Integrando três formações essenciais para a modernidade na música popular brasileira da década de 70 – no trio Terço, na Banda Atômica de Jorge Mautner e na Outra Banda da Terra de Caetano Veloso – é natural que Vinicius Cantuária goze de uma biografia artística de subentendidos. E dado o magnetismo dos astros que orbitou, nem sempre tornando explícitas as suas contribuições, essa condição periférica ocultou outra: a origem em Manaus, metrópole amazónica edificada sobre lama, borracha e igaçabas, sede de uma distinta sensibilidade que Cantuária credita à cultura indígena. E, no entanto, relembrando a sua discografia nativa (o homónimo de 1982, “Gávea de Manhã”, de 1983, “Sutis Diferenças”, de 1984, “Siga-me”, de 1985, ou “Nu Brasil”, de 1986), nota-se uma progressiva distanciação desses característicos traços, numa ação redundante, de alguma futilidade, e da qual, não obstante interessantes parcerias e notáveis participações, fica a memória de um desvanecimento autoral e o sabor das oportunidades perdidas. De facto, apenas na sua remota estreia a solo – elegante, sóbria e anacrónica – se encontram aquelas promessas de que pareciam cheios os seus discos mais recentes. Mas esses, a partir de “Sol na Cara”, de 1996, dependem do retomar da perspetiva previamente enunciada: sair do Brasil, para Nova Iorque, e tornar-se objetivamente estrangeiro e, por definição, mais brasileiro – como uma inversão do operado pelo seu cúmplice Arto Lindsay. “Índio de Apartamento” é, talvez, da dezena de álbuns lançados fora do seu país nos últimos 15 anos, aquele que melhor dá consequência ao inaugural de há 30, mas numa atmosfera rarefeita, de um inédito despojamento, como num espaço (o titular) em que só há já ar para um. Por isso, revelam-se ainda mais cruciais as elementares contribuições de Sakamoto, Frisell, Laginha ou Norah Jones.

12 de janeiro de 2013

Kayhan Kalhor “I Will Not Stand Alone” (World Village, 2012)



A música que Kayhan Kalhor e Ali Bahrami Fard vêm apresentar à Culturgest*, inspirada pela repressão aos protestos que se seguiram ao anúncio da vitória de Ahmadinejad nas eleições presidenciais de 2009 no Irão, é, em disco (“I Will Not Stand Alone”), tanto um elegíaco ciclo quanto um resistente clamor. E a opção dos músicos em mergulhar mais nas sombras dos graves (Kalhor estreia no álbum uma variante do kamancheh criada pelo prestigiado luthier Peter Biffin, cujo acréscimo de cordas permite uma aproximação àquela crueza reverberante e textural da viola da gamba, e Fard apresenta-se no santour baixo, de 96 cordas, percutido por plectros, espécie de Bösendorfer Imperial do universo dos címbalos) deve ser compreendida sob esse prisma. Pois, aqui, tudo emana das trevas – fé, arte e política, num mesmo cárcere. Mas Kalhor, que, no passado, em registos com o Kronos Quartet, com o projeto Silk Road, de Yo-Yo Ma, ou nas suas colaborações com o indiano Shujaat Husain Khan e com o turco Erdal Erzincan (editadas pela ECM), sempre salvaguardou princípios de tolerância com uma certa ecumenicidade, subverte as expectativas do próprio luto, acendendo uma centelha nas profundezas, transformando ardor em combustível através de fórmulas melismáticas que arrancam as entranhas às modalidades clássicas persas. Sobre o tumulto criado por Fard, que toca como se precisasse de acender 96 pavios com recurso a um único fósforo, Kalhor procede quase como um vândalo da melancolia, ornando em espirais as colunas que sustentam as ruínas do mundo, numa abundância de notas e efeitos, um desamparado hinologista numa câmara escura contando os raios de sol, articulando um pedido de misericórdia e um arrependido lamento pelo verdugo que há no Homem.

*Kayhan Kalhor & Ali Bahrami Fard
Culturgest, Lisboa 
Sex, 18 de Janeiro, 2013
Grande Auditório, 21h30