27 de abril de 2013

Maria João Pires “Schubert” (Deutsche Grammophon, 2013)



Como todo o artista na vanguarda do seu tempo, Schubert (1797-1828) deixou-se atrair pelas mais construtivas e destrutivas forças. E, por vezes, escutar as suas últimas obras é pressentir, no mesmo meditativo solilóquio, um período histórico a deslizar para o abismo civilizacional ou a caminhar para o êxtase de que fala a escatologia cristã – trata-se de uma tremenda ilusão que engendrou seguindo impulsos catárticos, mas que, na realidade, se traduzia na suspensão da ação entre cada instância. O emparelhamento de duas das suas mais celebradas e gravadas sonatas para piano – a D 845 em lá menor e a D 960 em si bemol maior – permite lembrar essa tendência que, num contexto canónico, emerge do Beethoven programaticamente racional e culmina no Wagner oniricamente apoteótico. Maria João Pires, que regressa a este repertório de ocasionalmente desesperada introspeção, privada sutileza e definitiva ambiguidade, ignora o violento sentimentalismo que domina as manifestações criativas contemporâneas. Aliás, qualquer nota por si tocada – por instantes numa lógica de frustrante inevitabilidade – é um concentrado de simplicidade e candura, sintetizando numa prática cristalina, e possivelmente neutral, aspetos espirituais (já sublinhados por Kempff ou Richter) e poéticos (conforme os exprimiu Uchida), contornando a radiante desolação com que Lupu encarava este material ou a turbulenta melancolia que aí encontrava Pollini. Com uma translúcida noção de textura e absoluto comando das possibilidades discursivas das peças, a sua interpretação possui apenas a idiossincrasia e extemporaneidade subjacentes às pautas, com paradigmática resolução nos scherzo, abordados como quem no fio do horizonte acha enfim o ponto em que deve fixar o olhar, sem saber se o que vê pertence ao seu passado ou ao seu futuro.

Entrevista a Bassekou Kouyate, por ocasião de “Jama Ko” (Out Here, 2013)



Estamos em fevereiro num hotel da Avenida de Roma – a comitiva de Kouyaté, aterrada de triunfante digressão pelo norte da Europa e acabada de contratar para o próximo Festival Músicas do Mundo de Sines, faz escala em Lisboa no regresso a Bamako – e cumprimentamo-nos com um sorriso agridoce. O momento é de celebração – o novo álbum confirma-se um fascinante manifesto de esperança e integridade – mas, ao mesmo tempo, chegam-nos de Tombuctu e Gao inquietantes notícias. Discutimos o pouco que se vai sabendo e Bassekou, circunspeto, reflete: “Preocupa-me a perda de soberania do meu país – e que este não seja tanto um caso isolado quanto um presságio para coisas piores”. O maliano – que produziu um tratado de sincretismo que iguala aqueloutros outrora postulados por Rail Band, Toumani Diabaté, Ali Farka Touré ou Oumou Sangaré – elenca os abusos que, ao abrigo da mais ortodoxa interpretação da lei islâmica, guerrilheiros tuaregues impuseram a concidadãos seus: “Uma terrível violência contra mulheres, detenções arbitrárias, flagelações públicas, lapidações, decapitações, interdições de fumar, beber, ouvir música, enquanto nos campos de treino em redor das aldeias drogavam jovens de 14 ou 15 anos, metendo-lhes nas mãos dinheiro, uma kalashnikov e prometendo-lhes o paraíso”. E continua: “Ora isto não é de bom muçulmano. É puro banditismo. Falo de gente que entra armada em mesquitas, que torra livros sagrados, que trafica – foi um ano infernal”. Ainda que sujeita a inúmeros contratempos, nomeadamente em consequência de atentados suicida, a investida francesa então em curso, tinha, segundo a retórica em voga, ‘libertado’ as principais cidades da região da ocupação pelas tropas do Ansar Dine ou do MUJAO. “E”, prossegue, “tudo isto porque tínhamos um presidente [Amadou Toumani Touré, deposto em Março de 2012] que não queria bombardear o seu próprio povo, nomeando até Ag Ahaly [líder do Ansar Dine] para um cargo diplomático. Porque isto não é um problema étnico!”. Kouyaté estava em estúdio na capital aquando do golpe militar: “tinha convidados vindos de fora… jornalistas, produtores, engenheiros de som, e eu aterrorizado com cortes de eletricidade, recolher obrigatório, balas perdidas, soldados amotinados”. Pressente-se nas suas palavras um profundo despeito, mas por entre o caos encontrou motivação: “quis, com este disco reunir a minha mulher [a cantora Amy Sacko], os meus filhos e amigos [de Taj Mahal à tuaregue Khaira Arby], e falar daquilo que anda há séculos a ser representado na nossa arte: porque a solução sabemo-la nós, músicos, que somos como um país à parte”. Comovente e panegírico símbolo para a paz, “Jama Ko” é uma porta de acesso a uma biblioteca organizada em torno do tema da tolerância. “Ouçam”, conclui, “porque quando nos calarmos é sinal de que o mundo – ao contrário das feridas nos nossos corpos – já não está capaz de se curar”.

Peter Evans “Zebulon” (More is More, 2013”)



Acaba de se confirmar a sua presença em Portugal no próximo “Jazz em Agosto” – no qual tocará na versão ampliada do trio The Thing, de Mats Gustafsson, e depois enquanto líder de um octeto – e ainda há pouco andou por cá, convidado por Rodrigo Amado para uma atuação e gravação com o Motion Trio. Nessa ocasião, no Teatro Maria Matos, revelou-se um soprador tão ruminante quão expressionista, sonorizando cada nota desde o seu gasoso despontar bronquial até à sua liquefação em ruidosas cusparadas. Evans aparenta saber que uma contorcionista demonstração de técnica, ainda que frívola, se pode provar irresistível, e, sob essa perspectiva, mais não fez do que prolongar, no trompete, uma tradição que privilegiou frequentemente o episódico e o anedótico, o dito mordaz, o aparte humorístico, mas também, porventura de forma punitiva no contexto de uma manifestação coletiva, a mais loquaz tagarelice. Quanto muito, correspondendo em palco ao preceito com que nomeou a sua própria editora – a More is More –, procedeu com zelo maximal até quando examinava o potencial expressivo dos pistões e do bocal do seu instrumento, numa polifónica autópsia a hálitos e humidades. Mas, na verdade, esse será apenas um aspeto – talvez conscientemente superficial – na sua idiomática articulação. Porque “Zebulon”, um empático registo ao vivo com o baterista Kassa Overall e o contrabaixista John Hébert, sustenta o argumento de que é através de uma construção mais esquematicamente arquitetónica e narrativa que, na circunstância da improvisação, melhor exprimirá uma distinta filosofia de valores morais. Aqui, em quatro longos temas, expõe um denso fluxo de ideias de maneira irrevogável, numa epidémica coligação de materiais canónicos e cuidadosamente compostos, cuja rapidez de execução sugere espontaneidade mas que dependem antes de uma astuta e fulgurante deliberação. Puro jazz.

20 de abril de 2013

Charles Lloyd/Jason Moran “Hagar’s Song” (ECM, 2013) & Charles Lloyd “Quartets” (5CD ECM, 2013)

 


Aos 75 anos, Charles Lloyd é um sobrevivente: raro asceta num meio dado ao indulgente culto da vulgaridade, humilde e reverente por entre zelotes e ególatras, modesta figura na congregação de megalómanos em que se transformou a cena mundial do jazz. Tudo isso, em “Hagar’s Song”, se nota pela forma em que subordina o virtuosismo a determinada disposição ou pela maneira em que se acomoda à natureza dos materiais de Strayhorn, Ellington, Gershwin, Dylan ou Brian Wilson, em vez de os moldar à sua imagem, relembrando que essas subtis emanações ficam para a imortalidade. A sua eloquência na suíte titular – que dedica à trisavó, aos dez anos comprada por um esclavagista do Tennessee – dispensa ornamentação e hipérbole e é uma tão violenta quão contemplativa restituição da memória que jamais incorre na paródia ou no proselitismo; isto é, a paixão com que Lloyd toca não implica uma escultórica fisicalidade nem pretende ocupar à força o ouvinte – pelo contrário, cada nota aparenta formular-se tal como havia despontado no seu espírito. E quase sempre assim tem sido há 25 anos, desde que reuniu o quarteto que marcou o seu regresso à música.
Muito se tem escrito acerca da fase – referida como de “reclusão”, “sabática” ou, esotericamente, de “viagem interior” – que, em 90, originou sebastiânica receção a “Fish Out of Water”. Dizem as crónicas – e algumas permanecem enleadas nesse equívoco – que Lloyd esteve 20 anos sem gravar, eclipsando-se após uma meteórica ascensão ao panteão comercial do jazz, quando “Forest Flower”, registado em 66 no Festival de Monterey, vendeu mais de um milhão de cópias e garantiu ao seu quarteto – o de Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette – uma aclamação apenas reservada àquelas bandas (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Byrds, Santana) com que passou a disputar cartaz no Auditório Fillmore. Numa entrevista de maio de 2004 ao “All About Jazz”, sintetizou nestes termos a decisão de se retirar: “era uma bomba-relógio prestes a detonar, estava acabado, farto do negócio da música, desiludido, tinha perdido o contato com tudo e todos, abusava de várias substâncias e precisava desesperadamente de trabalhar no meu carácter. A única coisa a fazer era afastar-me”.
Na verdade, talvez por necessidade terapêutica, o que isto significa é que, a partir de 70, desmembrado o seu grupo, privilegiou tarefas acessórias em estúdio – com Canned Heat, Doors, Roger McGuinn ou, crucialmente, dada a afinidade com Mike Love, ao lado dos Beach Boys – e desenvolveu projetos que possibilitaram uma mais ativa prossecução dos seus novos interesses (hinduísmo, vegetarianismo, meditação transcendental). Em “Moon Man” ou “Waves” canta como um vagabundo queimado pelo ‘verão do amor’, secundado por John Cipollina, McGuinn, Love, Al Jardine e os irmãos Brian e Carl Wilson; em “Geeta”, de 73, investe num aguado misticismo por temas dos Rolling Stones; com “Weavings”, de 78, ensaia o LP de smooth jazz pelo qual, obviamente, não deseja ser recordado, acercando-se de Grover Washington Jr. ou David Sanborn. Ao longo dessa década é ignorado por imprensa, público e músicos de jazz, até que lhe bate à porta Michel Petrucciani – o par de discos que gravaram entre 82 e 83 representa o primeiro retorno de Lloyd às lides de antanho. “Quartets”, que une os seus cinco álbuns iniciais na ECM, publicados entre 90 e 97, simboliza o segundo.
Em “Fish Out of Water” – e o título só se justifica se pensarmos na coetânea produção de Lovano, Berne, Steve Coleman, Ehrlich, Ware, Perelman ou Eskelin, pois de nenhum outro grande saxofonista do período Lloyd se aproxima – renasce como um muezim, numa assembleia conduzida como uma sessão espírita por Bobo Stenson, Palle Danielsson e Jon Christensen, em melodias castas e inofensivos caravanismos modais. “Notes from Big Sur”, com a dupla Anders Jormin e Ralph Peterson substituindo a secção rítmica escandinava, é como a linha costeira que o batiza: convidativo e inacessível, aprazível e inóspito. “The Call” assinala a entrada de Billy Hart no quarteto – vigorosamente empático e delicadamente pontilhista – fixando-lhe a formação e assumindo um tom elegíaco e cristalino. “All My Relations” – até tecnicamente, dada a sua dinâmica reverberação digital – revela um Lloyd mais assertivo, inquisitivo, voraz, convictamente profético, a evocar os anos passados com Chico Hamilton ou Cannonball Adderley. “Canto” é o canto do cisne do conjunto, serenamente reflexivo, inesperadamente tomado por uma brisa de leste que torna os seus constituintes essenciais, sugerindo que o melhor estava para vir.
E, de facto, os subsequentes “The Water is Wide”, “Lift Every Voice” ou “Mirror” confirmaram o restabelecimento total de Lloyd, na sua declamativa solenidade, rigorosa intelectualidade e ardente sensualidade – primeiro Brad Mehldau, depois Geri Allen e por fim Jason Moran, os pianistas que o tornaram a guiar ao cume da montanha. Cabe ao último – milagroso tecelão – a façanha de coassinar o mais comovente disco de Lloyd desde “Which Way is East” (2004), esplendorosamente biográfico e, quiçá, o culminar de uma vida ao serviço da beleza, que será um dia tido como um clássico e que, por sinal, mais vale começar a tratar como tal, não vá esgotar-se o tempo para o fazer.

“Glass: Solo Piano Music” (Brilliant Classics, 2013); “Holt: Solo Piano Music, Volumes I-V” (Brilliant Classics, 2013)

 

Jeroen van Veen (p)

Numa entrevista a Marc Myers, publicada no site “JazzWax”, Burt Bacharach discorria nostalgicamente acerca dos tempos de estudante até que recorda um curioso episódio: num exigente Curso de Verão conduzido por Darius Milhaud, submete, com embaraço, uma lírica sonatina, inspirando no professor a surpreendente sugestão de que “jamais deveria recear criar algo tão melódico e memorável”. É um detalhe – dos que falava Mies van der Rohe –, e imagina-se o compositor francês a comentar qualquer coisa do género com outros dois alunos seus, Philip Glass (1937-) e Simeon ten Holt (1923-2012). Aforísticos e epigramáticos, mas com distintas relações com a duração – velocista o primeiro, corredor de fundo o segundo –, evocam ambos o “esplendor geométrico” do futurista Marinetti, valorizando aspetos assimétricos, ainda que o conceito de devir proposto por Heraclito permaneça a mais válida introdução à sua produção. Trata-se em parte de uma labiríntica organização do som – dividida em secções sujeitas a (potencialmente infinita) repetição e sutil transformação – que, condescendendo, se ouve como a improvisação de um pianista que a partir de três minutos de Mozart, Chopin e Bartók tenha de acompanhar durante horas um documentário sobre genética ou citologia. Fúteis de perto e relevantes ao longe, vagamente ritualistas, estas obras possuem uma graça e inteligência muito próprias, com as suas arpejadas intrigas e os seus refluxos narrativos. Holt mantém-se uma revelação.

13 de abril de 2013

Rudresh Mahanthappa “Gamak” (ACT, 2013)



Quando Mahanthappa apresenta “Gamak” – designação inspirada pela palavra em sânscrito gamaka, que, no contexto da música clássica indiana, se emprega para aludir às possibilidades de ornamentação de determinada melodia – referindo-se a uma “sensibilidade universal” de que toma posse, enquanto compositor e improvisador, de maneira a incluir na sua produção “jazz, rock progressivo, heavy metal, country, folclore, go-go”, simultaneamente recorrendo a “tradições indianas, chinesas, africanas e indonésias”, fica subentendido um alinhamento com uma posição – endémica à ecologia artística de Nova Iorque – que, com o passar dos anos, aparentou tornar-se mais uma contingência do que uma necessidade. Mas, de facto, encontra-se aqui o mesmo urgente sentido de exploração – moderado apenas, como em John Zorn ou Steve Coleman, pela imprescindível obrigação de se propor uma distinta identidade cultural – verificado nas mais vibrantes manifestações da retórica criativa da cena downtown: uma articulação clara, crua, calculada, clamante, atenta a tensas formalidades coletivas e a extemporâneas expressões individuais, num discurso tão poliglota quão vernacular. Nada de muito diferente, embora com uma linearidade temática e uma especificidade idiomática aí estilhaçadas, do que ensaiou Miles Davis entre “On the Corner” e “Get Up with It” – e, na sua órbita, logo desenvolveram Mahavishnu Orchestra e Return to Forever – ou, talvez despontando na memória por facilitismo geográfico, um prolongamento espiritual da parceria de Joe Harriott com Amancio D’Silva no final dos anos 60 e das reuniões de Jan Garbarek com L. Shankar em meados de 80. Mahanthappa está particularmente gregário, o guitarrista David ‘Fuse’ Fiuczynski confirma-se um polimórfico virtuoso e François Moutin, no contrabaixo, e Dan Weiss, na bateria, dois vigorosos polímatas.

“Gesualdo: Sacrae Cantiones, Liber Secundus” (Harmonia Mundi, 2013)


Vocalconsort Berlin, James Wood

Numa antologia de dez contos publicada em 1980, Julio Cortázar, numa típica combinação de tópicos e trópicos, coloca frequentemente a descoberto as mais factícias e fictícias maquinações. No sétimo, e de forma literal – pois o texto acompanha as deambulações de uma itinerante trupe coral latino-americana sediada em Buenos Aires e entregue a repertório europeu do Renascimento e do Barroco –, irrompe uma assembleia de vozes, organizada, conforme posfácio do autor, de acordo com a “Oferenda Musical”, de Bach. Trata-se de um vertiginoso transtorno numa coleção predominantemente monofónica no qual desponta, ainda, uma insidiosa figura – essa, sim, central à trama que une os destinos das personagens – apresentada como “príncipe assassino, senhor da música”, Carlo Gesualdo (156?-1613), que “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os matou”. Hoje, quando se assinalam os 400 anos do falecimento do compositor, presume-se que de muitos outros crimes fosse culpado e, embora tenha vivido os seus dias à margem da lei, especula-se continuamente acerca de algo que parece óbvio: que transformou num castigo para si mesmo a vingança que havia exercido sobre Donna Maria d'Avalos e seu amante, Fabrizio Carafa. É à sombra de tão infame reputação que James Wood, diretor do Vocalconsort Berlin, submete agora um mimético e deslumbrante exercício de reconstrução estilística, propondo-se a regenerar um testamental segundo volume de motetos sacros para seis e sete vozes que, inventariado já sem bassus e sextus, se imagina estar, pelo menos, há quatro séculos por cantar. Longe da exuberância dos madrigais, mas nem por isso menos extravagante em termos cromáticos e praticamente contraintuitivo em matéria melódica, o que aqui se ouve é uma teia de trevas por onde ocasionalmente brota um raio de luz, pura expiação.

6 de abril de 2013

Kris Davis “Capricorn Climber” (Clean Feed, 2013)



Na sua “Oxford History of Western Music”, Richard Taruskin recorre à metáfora do icebergue para aludir à informação que, perdida na voragem dos séculos, se vai desprendendo da superfície, afundando-se pelas profundezas rumo ao esquecimento. Uma prática por si referida é a dos tratados de instrução técnico-musical, que indicavam aos instrumentistas como adornar melodias, bordar sequências de acordes, matizar tons, acentuar dinâmicas, introduzir variações, ou seja, interpretar tudo o que as partituras raramente preservam. Taruskin não o diz, mas, na literatura, foi Hemingway que postulou uma ‘teoria do icebergue’ para delinear o processo que permite que os factos concretos flutuem acima da linha de água enquanto a sua simbólica infraestrutura se edifica longe da vista. Entre um autor e outro, é de improvisação – como um princípio que ilude qualquer categorização dogmática – que se fala. E a pianista Kris Davis, neste sétimo disco da Clean Feed com a sua marca – contando com o quarteto RIDD, o trio SKM, o grupo Paradoxical Frog e “Novela”, o álbum de Tony Malaby que orquestrou –, nunca esteve tão próxima de ilustrar estas ideias. Numa invulgar combinação – acompanhada por Mat Maneri na violeta, Trevor Dunn ao contrabaixo e pelo casal Ingrid Laubrock, em saxofone tenor, e Tom Rainey, à bateria – cada uma das suas peças, tão geométrica e matematicamente concebidas quão etérea e hesitantemente esboçadas, navega entre o que se compreende e o que apenas se pressente, num espaço de invenção ora evidente, ora submerso, retalhado por uma sinuosidade linguística e por um discurso vacilante e solipsista, mas também por um assertivo fluxo de intenções e um sistemático jorro de valência coloquial. Parte “Viola in My Life”, se Morton Feldman a tivesse criado para quinteto de jazz, parte, lá está, a comunhão com o desconhecido.

Adriana Partimpim “Partimpim Tlês” (Minha Música/Sony, 2012)


Numa inócua expressão, da heterónoma aventura de Adriana pelos estágios pré-adolescentes da existência costuma dizer-se que segue com diligência uma conceção da infância inextricavelmente associada à alvorada da sociedade de consumo. Afinal, trata-se de uma invenção moderna, essa que determina de maneira inalienável um tempo de felicidade, bem-estar e diversão para todos – isto é, foi preciso esperar pelo século XX para que Peter Pan não se constituísse enquanto paradoxo. Cem anos depois, a síndrome da criança que se recusa a crescer transformou-se num estilo de vida sintetizado por Christopher Noxon em “Rejuvenile”, livro descaradamente inserido pela sua mulher, Jenji Kohan, em episódios da série televisiva de que é autora, “Weeds”; não por acaso, ‘Little Boxes’, a ladainha que o casal elegeu para acompanhar genericamente as desventuras de adultos disfuncionais, havia sido originalmente interpretada por Pete Seeger no período em que o cantor de intervenção, na peugada de Guthrie, alternava discos de provocante sátira política para graúdos com compêndios de elementar pedagogia para miúdos, prolongando uma linhagem que tem hoje descendente em Elizabeth Mitchell, cujo recente “Blue Clouds” é um novo tratado de sensibilidade e inteligência ao serviço da ideal primeira juventude. Num procedimento semelhante, nomeadamente na recondução de temas sérios para o espaço lúdico das pequenas criaturas, ao mesmo almeja Calcanhotto, embora aparente dirigir-se mais a pais que não querem envelhecer do que aos seus rebentos. Para tal contribui a arregimentação de estetas de bricabraque sonoro (Ceppas, Amarante, Kassin, Domenico, Moreno, Pedro Sá) que evitam a total marretização da sua chefe. Talvez seja pelo melhor, mas, no contexto brasileiro, ainda não é desta que Partimpim supera “Saltimbancos”, “Arca de Noé”, “Casa de Brinquedos” ou “Pirlimpimpim”.