28 de junho de 2014

Festival Gnaoua e Festival de Fez - Músicas Sacras do Mundo, 2014



Percorrem-se as ruas de Essaouira e adivinham-se sortilégios a cada esquina. Mais ainda quando a noite cai e a bruma atlântica rende nas sentinelas o fumeiro dos grelhadores ambulantes e arrefece os vapores dos banhos turcos. No beco que conduz aos escombros da igreja franciscana, paredes-meias com o velho consulado português, um grupo de turistas entrevê espetros, que efémeros clarões enchem de luz, e hesita, até que se atrapalha ao dar conta de estar a flagrar, iluminadas a telemóvel, beijoquices entre rapazes e raparigas do primeiro ciclo. Num relato de viagens por Marrocos, contemporâneo de “A Idade da Inocência”, Edith Wharton falava numa “terra de enigmas e neblinas”, e, até hoje, predomina no espírito de quem anda pela cidade essa ideia de negociação com o inexplicável. Mas, em certa medida, todos se iludem. E instantes há em que o herbalista, o prateiro, o comerciante de pedra alúmen, o estampador de t-shirts de Jimi Hendrix ou o guardião da biblioteca de Dar Souiri não são mais do que mistificações em mentes ocidentais. Dir-se-ia que ao longo do “Festival Gnaoua” – que acabou de assinalar a sua 17ª edição entre 12 e 15 de junho – algo de semelhante, como um atentado à lógica, se dependura de faces alemãs, britânicas, escandinavas. Pois, entre os europeus, despertam instintos piedosos nos que há muito largaram a religião e impõem-se impulsos sentimentais nos que, acima de tudo, se orgulham de ser práticos. É quase a substituição de um lugar-comum por outro, mas, durante os concertos de maâlems marroquinos, como nas cerimónias que marcam a entrada em sociedades secretas, são esses, os que nada sabem de si mesmos, os únicos agentes ao serviço do mistério.
Claro que um certame que tem como cabeças de cartaz Didier Lockwood, Ibrahim Maalouf ou Marcus Miller se dá bem enquanto sede para voláteis conceções de identidade. Nas palavras da sua diretora, Neila Tazi Abdi, “a originalidade desta música tem equivalência em modelos inovadores de pensar a vida em sociedade: já não persistem antagonismos entre o moderno e o ancestral.” Talvez por isso se promovam diálogos com músicos berberes: Lockwood também atuou com Hassan Boussou, Miller com Mustapha Baqbou, as luminárias da fusão brandindo os seus instrumentos como cimitarras num interminável desfile de expressões supérfluas. A iniciativa – considera a organização – “demonstra a abertura e generosidade dos praticantes gnaoua”, mas acaba por ser limitativa: artistas internacionais são convocados pela sua propensão natural em estimular híbridos culturais e músicos locais têm de evidenciar, por vezes de modo francamente artificial, a latente universalidade naquilo que fazem. Seja como for, as colaborações em palco vão de encontro ao tema discutido em mesas-redondas: “A áfrica que aí vem”. Não será um paradoxo menor que os melhores concertos do festival tenham vindo pela mão daqueles que não se cansam de repetir o venerado truísmo da tradição: ‘o meu futuro é o meu passado’. E que tenha Bassekou Kouyaté afiançado que do amanhã ninguém sabe. Como disse ao Expresso: “Desde o fim do século XVIII que as caravanas atravessam o deserto para aqui chegar; neste momento, na outra ponta da estrada, no Mali, ainda estão os fundamentalistas. É bom que se pense nisso.”
Na noite de 12, a entrada em cena de El Khadir Chawqi – a malhar no qraqeb, espécie de castanhola de metal que evoca um cavalo a galope – foi consonante com o que se ouve nos acessos a Essaouira: o telintar de porta-chaves em dezenas de mãos que, acenando-os para os carros que passam, assim apregoam casas e quartos para alugar. Aos poucos, sentados em meia-lua, os membros do coletivo foram contraindo a obrigação do público e cada salva de palmas era uma genuflexão. De seguida, já passava da meia-noite, vinha a trupe de Benachir Bouchabchoub e logo se provava o que outros confirmariam: que basta um par de notas tocadas no gimbri para se distinguir um mestre gnaoua. Em frente aos músicos, de pé, até às duas e meia da manhã, um vidente, exorcista, curandeiro e hipnotizador: queimando incenso, salpicando profilaticamente a assistência com uma infusão de rosas, sorrindo beatificamente, até que a música só tem interesse pela maneira em que o seu corpo a veicula ou, melhor, como se ele fosse uma aparição gerada por quem a toca e a ouve. A confraria Hmadcha, ao ar livre, entregou-se igualmente à dança extática e a rituais de possessão: unidos pelo ombro, os seus cantores enlevavam-se e, de concreto, só o seu olhar, esculpindo o nevoeiro que conquistava o torreão de Borj Bab Marrakech. Pela madrugada de 13 para 14 chegou Hamid El Kasri, porventura o mais popular dos gnaoua, cantando em árabe, pregando e exultando, com um tom declamatório, tão estoico quanto cómico. De 14 para 15, a irmandade sufi Issaoua d’Essaouira, em que cada oração é uma aguarela, cores suaves a fluir em papel, texturas desprovidas de contornos. Invocando-se, transmitiram a quem estava a seu lado tudo o que tinha de saber para passar graciosamente pela vida. Para Abdi, é isto que prova o poder da música: “Como dizia Mandela, ‘a música consegue desafiar tudo’.”
Curiosamente, também a 20ª edição do “Festival de Fez – Músicas Sacras do Mundo” decorreu, entre 13 e 21 de junho, sob a égide de Nelson Mandela, conquanto estivesse tematicamente subordinada ao épico persa “Conferência dos Pássaros”, de Farid ud-Dîn Attâr. A parábola do poema contagiou a maliana Rokia Traoré e a boliviana Luzmila Carpio, que se apresentaram sob a azinheira do Museu Batha sorrindo aos passarinhos. O público tinha um arrepio sobrenatural sempre que um chilreio rimava com a música, mas um olhar atento revelava uma não menos alegórica luta entre um estorninho e um casal de rolas. Mas entre palestras e um concerto de homenagem, foi do antigo presidente sul-africano, e, por seu intermédio, de perdão, que um batalhão de académicos, intelectuais, ministros, diplomatas, escritores ou jornalistas mais falou. Faouzi Skali, fundador do festival, há muito afirmou ter encontrado motivação nos discursos maniqueístas que escoraram a Guerra do Golfo, aos quais desejava contrapor um conjunto de atividades que realçassem “valores humanistas e espirituais”. Em 93, pouco antes da edição inaugural, o próprio rei Hassan II declarava ser “necessário demonstrar que o Mediterrâneo se pode tornar uma zona de solidariedade e equilíbrio.” Vinte anos depois, essa retórica filantrópica cobre e redime a cidade. Debate-se música enquanto propedêutica da tolerância, idealizam-se as relações humanas, procura-se uma “alma para a globalização”. Mas nada se diz sobre a marcha da ISIS pelo Iraque, a guerra-civil na Síria, os conflitos tribais no Quénia, a ação do Boko Haram na Nigéria, os raptos em Israel, os campos de refugiados no Sara Ocidental.
É óbvio que entre Fez e Essaouira vai um mundo de distância. Para trás, uma turba de mochileiros indecisa entre o sol e a arte, tornozelos com braceletes de sal, dunas cor de mel, o hálito a açafrão e argão na boca do vento alísio, aquelas quatro parisienses que, na praia, aguardam um novo dia, deixando na areia qualquer coisa parecida com o que escreveu Olympe Audouard em “Voyage à Travers Mes Souvenirs”: “A minha vida tem duas partes distintas: uma, sombria e dolorosa, passada em França; a outra, luminosa e alegre, passada a viajar.” Em Fez, pode, ao longe, a almedina assemelhar-se ao caixote em que o filho de um gigante guarda os legos, mas, de perto, à sombra das madraças, dos palacetes, do jardim Jnan Sbil ou da mesquita de al-Qarawiyyin, impressiona pela fortaleza de absolutismo que um dia foi. Comparados com os outros, mais a sul, os seus visitantes são transparências de seda e musselina, expatriados fantasmas da Zona Internacional. No dealbar da independência marroquina, Paul Bowles aí estabeleceu “The Spider’s House”: “Quando aqui cheguei esta terra era pura, com música, dança e magia pelas ruas. Agora, tudo acabou. Até a religião. Em pouco tempo este país será como qualquer outra nação muçulmana: mais um bairro de lata europeu cheio de pobreza e ódio.” Podia estar a falar acerca do efeito do turismo de massas, hoje o reverso da medalha à nomeação de Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
Jordi Savall, na tarde de 17, toca com Driss El Maloumi, Houcin Baqir e Hakan Güngör, e fala de uma canção de embalar que durante séculos pôs num mesmo berço o sul da europa e o norte de áfrica, prova, diz, “de que há sempre mais a unir-nos do que a separar-nos.” Na noite de 16, o chinês Wang-Li menciona vidas passadas e cerra a vista como se tivesse o sol a bater-lhe nos olhos. É pouco mais que uma aragem, a sua música. Perto de si, Cheikh Didi, um homem pequeno, de ar desconfiado, chegado do Atlas, invocando um mundo que desejaria tornar eterno. Também as cazaques Ulzhan Baibussynova e Raushan Urazbayeva e a uzbeque Nodira Pirmatova trouxeram histórias das estepes, onde o vento e o tempo são imemoriais. Na noite de 17, o sexteto de Tomatito espantou os males de uma comitiva espanhola a braços com o Mundial e a sucessão, tocando com tal arrebatamento que cada nota parecia uma prenda para os seus patrícios. Juntou-se-lhe Omar Bouzmaazought, cantando em tamazight e tocando o loutar, e ainda mais se patenteou a técnica digressiva e delicada do andaluz, ciente de que um guitarrista de flamenco atua como um médico numa operação: quanto mais mexe, mais o paciente grita. Sutileza desperdiçada por Zakir Hussain e Rakesh Chaurasia, quando, após duetos em que se diria ser um só o coração que batia, passaram do extraordinário ao vulgar, transformando a música clássica indiana numa fábrica de imitações em que cabiam toques de telemóvel, a “Pequena Música Noturna”, a “Carta a Elisa” ou o tema de “O Bom, o Mau e o Vilão”. Na noite de 15, reunia-se uma multidão em Bab Al Makina para o espetáculo de Johnny Clegg e Youssou N’Dour: o primeiro, afeiçoado a gestos obsoletos como uma dona-de-casa aos seus bibelôs, o segundo, irrepreensível, com uma banda de 15 elementos, mas capaz de parar a rotação do planeta ao erguer sozinho a voz e apontando-a em direção àquele céu que, disse-o também Bowles, “esconde a noite e nos protege do terror que por trás dela se oculta.” Não poderia haver melhor local para o relembrar.

21 de junho de 2014

Luís Vicente, Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino, Marco Franco “Clocks and Clouds” (FMR, 2014)




Sobre a sua “Clocks and Clouds”, afirmou Ligeti: “É formada por um conjunto de processos através do qual os ‘relógios’ se dissolvem em ‘nuvens’ e as ‘nuvens’ se materializam em ‘relógios’”, numa referência direta a um ensaio de Popper em que se balizava a escala da indeterminação a partir do que era eminentemente determinável (um relógio, com peças e mecanismos de inequívoca compreensão) e do que não se podia determinar (uma nuvem, cujo significado se apreende pelo exame de todo um sistema e não tanto pelo estudo em separado dos seus componentes). É natural que o conceito atraia improvisadores, cuja ambição, a um nível cultural, é precisamente a de unir aquilo que tem tendência para a dispersão ou aproximar o que subsiste à margem do dogma. Por isso depende da documentação, pese embora seja um risco coreografar-se em demasia a espontaneidade. Nessa perspetiva, este CD, eventualmente inspirado no que acima se referiu, admite sete indexações – mais breve a que ronda os 2 minutos (‘Hunting Song’, tangível como algo feito de materiais encontrados no chão de uma floresta) – mas talvez fosse preferível ficar-se por uma, apenas, que lhe perfizesse a duração integral e que se tornasse mais sensível a tempos diferentes de reação. Até porque, acerca de ‘Compression Test’ (com 18 minutos, o mais longo dos temas), por exemplo, declarar-se-ia, à partida, que trataria da manifestação de uma incoerência semântica não fosse a sua escuta confirmar o caráter extorsionário do modo em que conclui. Isto é, estranhar-se-á falar-se de compressão na mais dilatado exercício aqui presente, mas, também, é verdade que o álbum não afasta a ideia de que põe à vista o negativo de outra coisa, inversa, a que veda o acesso. Não obstante tal perceção, ou, quiçá, por essa razão, revela uma enorme maturidade. Luís Vicente (trompete), no mais retórico dos estilos, desenha azuladas interrogações no ar e, noutros, com pontos de contacto com práticas coetâneas, garatuja-o com avermelhados gases de mau-génio, mantendo-se em cada instância capaz de atribuir direção ao que dá mostras de se realizar sem motivo aparente. Com surdina, é dúctil o sopro que o anima, mas a estabilidade tonal é contingencial ao mais axiomático nas suas emissões. Marco Franco (bateria) é um percussionista que evita a mecânica, ciente de que, entre aqueles de que poderá lançar mão, a repetição é o recurso menos interessante ao seu dispor, escolhendo colorir, comentar com inesperadas pronúncias, tomar posse do corpo do coletivo com uma seriedade praticamente satírica. Rodrigo Pinheiro (piano) move-se no palco com a imposição de um encenador, ora seguindo o guião, ora dele se distanciando de forma imprevisível, ora discursivo, ora dedutivo, alimentando-se dos papéis a seu lado desempenhados ou só pelos pensamentos que o habitam. Em Hernâni Faustino (contrabaixo) está patente a capacidade de tudo ligar, quando toca de maneira rigorosamente ortográfica, ou, ao invés, separar, ao abdicar de qualquer formalismo. Como relógios e nuvens, dir-se-ia.

“Marie et Marion” & Landini: The Second Circle (Harmonia Mundi, 2014)



 

Anonymous 4


Foi há vinte anos, num “Love’s Illusion” que concedia predominância ao mundano, que o Anonymous 4 apresentou um primeiro conjunto de motetos encontrados no Códice de Montpellier (c. 1300). Aliás, a inesperada exceção à secularidade surgia no único verso que colocava sob invocação a figura da Virgem Maria. Desde então, dizem, que desejam “produzir um programa que explore a justaposição dos temas de amor cortesão e de devoção mariana”. Em latim, francês antigo ou poliglotas, os textos são velhos como as estações, trazendo ecos de poesia trovadoresca e litúrgica mas revelando a cada instante o mesmo ardor, tecendo-se à sombra do ciúme ou da timidez mas quase sempre tingidos pelas flores de maio e enlevados pelo chilrear dos pássaros. Da Maria imaculada até à Maria que vai com as outras, diz-se: “É como o botão da rosa e uma flor entre as damas” (‘A la clarte qui tout’), “Tão bela que por esse motivo se ilumina e resplandece o Paraíso” (‘De la gloriouse fenix’) ou “E quando me observa com os seus olhos verde-cinza, mata-me” (‘Que ferai biau sire’). Em nome da ambiguidade, e pelo conteúdo afim, justifica-se recuperar outro registo do quarteto de cantoras há pouco reeditado: um “The Second Circle” que, dedicado às baladas de Francesco Landini e organizado sob a égide de Dante e do stilnovismo, acompanha a expansiva aplicação em Itália dos fundamentos da ars nova num quadro de amor possível e falhado e, lá está, do inferno que se prefere quando ele é impossível.