4 de março de 2017

Aki Takase/David Murray “Cherry – Sakura” (Intakt, 2017)


É loquaz nos mais variados contextos, é certo. Aliás, só com o World Saxophone Quartet tem ele vinte discos. Não obstante, dir-se-ia que nada como o dueto traz ao de cima aquele expressivo equilíbrio entre cerimónia e acrimónia que David Murray vem favorecendo desde meados dos anos 80 através de colaborações com pianistas como John Hicks, Randy Weston, Dave Burrell ou Mal Waldron. Dessas, em catálogo, sobressai uma com Aki Takase, precisamente: “Blue Monk”, captada em abril de 1991, mais um dos annus mirabilis do saxofonista, quando não era incomum tomar o mercado de assalto com múltiplos lançamentos simultâneos. Bom, nem ele, nem o mercado são hoje o que eram. E é verdade que, neste milénio (em rigor, desde “Creole”, em 1998), na sua fase FMM de Sines, Murray tem enveredado por aquilo a que se poderia chamar de música de síntese – mestiça e mistagógica, poliglota e puritana. Mas eis que, de forma inesperada, surge agora um prodigioso “Cherry – Sakura”, gravado em abril de 2016, isto é, 25 anos depois da última ida a estúdio com Takase, e Bill Shoemaker, que lhe redigiu notas de apresentação, reconhece que após tão grande intervalo de tempo “só muito raramente consegue a relação entre dois músicos atingir aquele nível em que a conversa é retomada no ponto exato em que havia sido deixada”. Sim, no mínimo é disso que se trata. Mas, por outro lado, se calhar vale mesmo a pena baixar a guarda e, à boleia de ‘To A. P. Kern’, um original de Murray aqui incluído e presumivelmente inspirado pelo poema homónimo de Pushkin dedicado a Anna Petrovna Kern, sugerir que com este reencontro voltam também aos corações do norte-americano e da japonesa os sentimentos de “espanto e inspiração/ próprios da vida, das lágrimas e do amor”. (Note-se que em 2004 Murray compôs “O Mouro Negro de Pedro, o Grande”, uma ópera baseada em textos do poeta russo sobre a extraordinária história do bisavô, Abram Petrovich). Tudo reforçado de modo pungente por um título que evoca o que, no Japão, se apelida de hanami, o costume de se apreciar a efémera formosura das flores de cerejeira. E isto é fado.

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