27 de maio de 2017

Tarkovsky Quartet “Nuit Blanche” (ECM, 2017)


Surgem em áreas de fronteira, os sonhos, nos filmes de Tarkovski. E dir-se-ia que não servem tanto para lhes demarcar as linhas divisórias quanto para determinar aquilo que as mantém em derrame. É um dispositivo com tendência para o paradoxo, claro, ao obrigar a uma perceção mais atenta de tudo o que se desenrola à medida que dos próprios objetos se esfuma a evidência do real. Isto, não obstante a completa reversibilidade destes conceitos na obra do realizador. Agora, ao terceiro ensaio, este Tarkovsky Quartet, constituído por François Couturier (piano), Anja Lechner (violoncelo), Jean-Marc Larché (saxofone soprano) e Jean-Louis Matinier (acordeão), aproxima-se mais ainda dessa lógica onírica por intermédio de temas esboçados e algo espúrios, reduzidos a escombros, escapando à esfera da perceção comum e evadindo-se de qualquer estrutura, estilhaços extraídos à estética da música de câmara aqui, à do folclore acolá, sem aderir a nenhuma. 

Noutro contexto, este despiste ao cânone colocaria a nu um conjunto de fraquezas que são pertença do quarteto, em que tudo é significativo e alusivo. No entanto, nada compromete o impacto emocional de uma música que dá mostras de possuir uma dimensão inesgotável e insubstituível ao preferir a linguagem oculta à corrente. Ouvi-la, traz à memória, aliás, o que ele dizia em “Esculpir o Tempo”: “A força vital da música materializa-se no limiar do seu total desaparecimento.” Daí, a importância do conflito nesta formação. Pois, não se tratando de outra coisa que não de um grupo de quatro solistas, é desse atrito que nasce a centelha que animava, também, o cinema de Tarkovski: em que a responsabilidade de cada um em relação ao curso geral da vida humana crescia consoante o valor intrínseco das ações individuais. Numa das suas últimas entrevistas, Tarkovski disse: “Os sonhos proféticos aparecem no momento em que adormeço, quando a minha alma se separa do mundo das planícies e sobe em direção aos cumes das montanhas”. Esta música acompanha-o.

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