24 de junho de 2017

Kurtág: Complete Works For Ensemble And Choir (ECM, 2017)



A certo ponto, num livro que reproduz entrevistas ao compositor, conduzidas por Bálint András Varga, quando se aflora o tema da interpretação da sua obra (e de como, nesse domínio, é complicado encontrar gente à altura dos acontecimentos), György Kurtág não se isenta de responsabilidades: “Nunca consigo ouvir as minhas próprias ideias com clareza... Ninguém consegue... Não há nada a fazer”, declara, embora, pelas reticências, e tendo em conta a música que escreve, se deva dizer, antes, declama. No fundo, referia-se àquele período em que, dominado pela ansiedade e pela depressão, até o seu pensamento se diria suspenso. Aliás, quando em 1959 compôs o seu primeiro quarteto de cordas e se sentiu a dar à luz o seu opúsculo inicial, transferiu o mérito para a terapeuta, Marianne Stein, passando a integrar o leque de compositores com descobertas importantes saídas do divã: o Rachmaninoff do segundo concerto para piano, o Charles Mingus de “The Black Saint and the Sinner Lady”, o John Lennon da estreia a solo, etc. 

É, então, significativo que, agora, num depoimento incluído no livreto desta edição, venha dizer: “Há peças acerca das quais sempre tive dúvidas, mas, graças a Reinbert, [ouço-as] como em tempos esperei que pudessem vir a soar.” Nesse particular, não se trata bem daquilo que o título sugere: além de coral (com ponto alto no dilacerante ciclo de canções de desespero e pesar criado a partir de poesia russa – Blok, Mandelstam, Tsvetayeva ou Akhmatova –, que não soviética, o que é muitíssimo revelador), escuta-se música de câmara (como a fascinante “Grabstein für Stephan”, dedicada ao marido de Marianne, ou a irredutível “… quasi una fantasia…”), concertante (o impactante “Duplo Concerto”) e vocal (a expressiva “Mensagens da defunta menina R. Troussova” ou os lutuosos “Quatro Poemas de Anna Akhmatova”). Tudo naquela linguagem algo gnómica e fragmentada, mas nem por isso menos essencial, como que à beira do último suspiro, a que, aos 91 anos, Kurtág teima em resistir.

“Skatalites: Original Ska Sounds From The Skatalites 1963-65” (Soul Jazz, 2017)


No início da década de 60, em Kingston, numa carta dirigida ao “Daily Gleaner”, William Stanley Moss – veterano de guerra, venerado autor e viajante inveterado – não fazia por esconder a sua indignação: “Ainda há pouco tempo atrás, claro, sob orientação de Billy Cooke, um seleto grupo [de instrumentistas] atuava diariamente no agora defunto The End, mas cada qual foi para seu lado quando o clube fechou. Alguns, como o próprio Billy, formaram pequenos combos; outros, como Tommy McCook ou Ernie Ranglin, lamentavelmente, venderam-se ao ska.” Como se sabe, Moss tinha o jazz entranhado no corpo. E é possível que, de modo algo perverso, após uma vida incorporado em regimentos, entendesse essa súbita tentativa de tirar proveito de um estilo autóctone por músicos tão cosmopolitas como uma deserção. Afinal, Cooke, McCook, Ranglin e demais companheiros de workshop (denominação apócrifa, por alturas da edição de “Jazz Jamaica”), como Don Drummond ou Roland Alphonso, alguns deles colegas de carteira nas aulas de educação musical da Alpha Boys School ou saídos das fileiras da orquestra de Eric Deans, poderiam vir a constituir a próxima fornada de talento jamaicano em busca de consagração internacional no mundo do jazz, na senda de Dizzy Reece, Joe Harriott e Harold McNair. Como é óbvio, McCook, Drummond e Alphonso, com Lester Sterling, Johnny “Dizzy” Moore, Jackie Mittoo, “Jah Jerry” Haynes, Lloyd Brevett e Lloyd Knibb, alinhados nos Skatalites, foram muito mais longe do que isso sem sequer precisarem de sair de casa, quando a peculiar síncope coletivamente desenvolvida em centenas de gravações ao longo de pouco mais de um ano se veio a provar um embrião para êxitos à escala planetária (de ‘Louie Louie’ a ‘Ob-La-Di, Ob-La-Da’). “O que dirá a expressão skatalite ao comum dos jamaicanos daqui a uns anos?”, interrogava-se Moss. Embora não o pudesse saber, não muito menos que a palavra autonomia. É o que a atual formação do grupo virá lembrar dia 1 de julho ao festival Musa Cascais.

17 de junho de 2017

Bill Frisell & Thomas Morgan “Small Town” (ECM, 2017)

Numa fase de transição da sua carreira, ali, ao virar da década de 80 para a de 90, a música de Bill Frisell era apreciada pela sua dicacidade, não tanto, digamos, pela sua dimensão didática. Claro que uma qualidade não tem de excluir a outra, mas, na altura, em Nova Iorque, toda a intimação aos sentidos parecia depender do desejo de expor alguma coisa ao ridículo. Só que Frisell era aquele raro instrumentista, capaz de proceder de modo satírico e sentimental sem dar mostras de possuir qualquer oposição conceptual em mãos. Era como se buscasse empatia num terreno extraordinariamente hostil à afeição. Até que, aos poucos, o seu vasto e variado saber serviu para verificar a efetiva preeminência de determinados temas na produção cultural norte-americana. Isso, e, como me disse um dia Marc Ribot, para criar “aquela música com que a própria música sonha quando está com a cabeça no lugar”. Não que Frisell tenha um estilo previsível, longe disso. Mas a verdade é que permanece instantaneamente reconhecível. O que não deixa de ser problemático: pois muito daquilo que facilita a identificação do seu trabalho é o tanto que dificulta a descoberta de tudo o que nele mudou.

Hoje, como é óbvio, dir-se-ia que não há falhas na gramática da sua narrativa, pese embora o seu gosto por improvisações nada lineares. Da mesma maneira, não obstante a capacidade que mantém de iludir restrições, é mais visível o seu apego pela História. No limite, quando toca, compreende-se melhor a medida exata do seu idealismo: com prováveis insuficiências, a da expressão musical enquanto experiência social. Nessa perspetiva, o dueto viabiliza agora uma exposição mais crua dessa valência, da mesma forma que a cidade de província a que alude o título deste belíssimo disco permite examinar o significado atual dos valores da vida comunitária. Gravado ao vivo, no Village Vanguard, com o contrabaixista Thomas Morgan (que, devidamente inspirado, lembra a coloquialidade de Charlie Haden), “Small Town” evoca Paul Motian, Lee Konitz, Fats Domino e a Carter Family, gente que cedo aprendeu uma velha lição: por mais descartável que seja no dia-a-dia, a música dá azo a que se recupere tudo o que pela vida se vai perdendo.

Rebelo: Psalmi, Magnificat & Lamentationes (Etcetera, re. 2017)


O efeito já não surpreende tanto, é certo. Mas, quando, mais ou menos a meio desta reedição, alternadamente no “Magnificat” e de modo francamente exuberante em “Qui Habitat”, tal a superabundância de trechos melismáticos, os solistas do Currende parecem acometidos de um operático ataque de soluços, torna-se, por fim, claro que a obra de João Lourenço Rebelo (1610-1665) fala de fronteiras: morais, emocionais, sociais, políticas, estéticas. Claro que Erik van Nevel dá uma ajudinha: ao contrário, por exemplo, do que, com o mesmíssimo repertório, havia feito o seu tio, Paul, com o Huelgas Ensemble, em meados dos anos 80, o maestro belga deixa baixões, cornetas, sacabuxas e charamelas no saco e atribui as partes instrumentais obrigadas ao cravo, a trombones, aos violinos e às violas da gamba. Isto é, estimula com a proteína do barroco um conjunto de corpos que se diriam, ainda, anestesiados pela ação contrarreformista – pelo menos, tendo em conta a produção de Duarte Lobo, Filipe de Magalhães ou Manuel Cardoso, mestres da polifonia sacra portuguesa do Renascimento, contemporâneos de Rebelo. 

Só que, de facto, com ele, tudo dá mostras de ter sido excecional, a começar pela educação no Paço de Bragança, em Vila Viçosa, passando pela exposição à famosa biblioteca musical do ducado, a maior da Europa, e pela relação de amizade com João, o Restaurador, que lhe dedica o tratado “Defesa da Música Moderna…” quando o inverso seria a norma, e culminando, enfim, nestas expressivas criações que apontam mais para Monteverdi do que para Palestrina. Em “Olhares Sobre a História da Música em Portugal” há uma frase de Rui Vieira Nery que sintetiza um dos motivos para tamanho brio, quando, ao referir-se aos Braganças, sugere que “manter uma Capela Ducal de nível equivalente ao da Capela Real [madrilena] era um símbolo externo indispensável ao reconhecimento público da sua dignidade régia e da legitimidade última das suas pretensões de sucessão”. A partir de 1640, com a subida ao trono de D. João, renasce a autoestima do país e retoma-se uma certa prática humanista: e é a isto que soava.

10 de junho de 2017

Debashish Bhattacharya “Hawaii To Calcutta: A Tribute To Tau Moe” (Riverboat, 2017)


Do Havai a Calcutá. Dir-se-ia que estava virado do avesso, o título. Afinal, este “Tribute to Tau Moe” foi gravado em Honolulu, o El Dorado da guitarra slide de colo, com luminárias locais como Jeff Peterson, Benny Chong, Bobby Ingano ou Alan Akaka. Mas percebe-se a intenção, claro. E, quiçá, o receio de o ver confundido com aquele “Calcutta to California” de meados dos anos 90, não possuía ainda Debashish a robustez autoral que hoje se lhe reconhece. Além de que, como é óbvio, o que interessa agora é honrar-se um passado comum, coisa mais difícil do que mostrar lealdade a um presente meramente circunstancial. O pretexto da dedicatória, então, será evocar a odisseia da trupe itinerante de Tau Moe (1908-2004). Mais concretamente, durante a Segunda Guerra Mundial e a meia dúzia de anos imediatamente a seguir, o período em que - impossibilitada de regressar ao Havai em virtude do bombardeamento de Pearl Harbor, e após estágios perfeitamente antológicos no sudeste asiático, pelo médio oriente e na Alemanha nazi - a família assentou arraiais na Índia, onde Tau funcionava como uma espécie de diretor musical para bandas de hotéis, restaurantes e casinos do subcontinente, não obstante as ameaças da força aérea japonesa. Como explica John W. Troutman, no seminal “Kika Kila: How the Hawaiian Steel Guitar Changed the Sound of Modern Music”, das dezenas de países pelos quais passou, “Foi na Índia que Tau Moe se provou uma influência mais duradoura. Aliás, graças à imensa popularidade das suas gravações, às aulas de música havaiana em que ensinava muitas crianças ou às emissões de rádio em que participava, deu claramente origem a uma revolução no vernáculo do país.” Bastará recordar a adoção da guitarra havaiana por Rajat Nandi, Brij Bhushan Kabra, Charanjit Singh ou Van Shipley. Aqui, mais relutante a aceitar o exotismo, carateristicamente meditativo mas nem por isso menos interessado em adornar cada melodia com grinaldas de flores, vem Debashish lembrar esse vínculo inquebrável.